O Inquérito
O Inquérito
Mais ou menos dez dias depois de terem queimado todos os livros do país, começaram a fazer inquéritos em pequenas casas cujas fachadas exibiam, em grandes caractreres, os dizeres “Delegacia para Idealistas”.
Todos os envolvidos foram chamados.
Quando chegou minha vez de depor, estranhei a claridade da sala.
Os inquisidores tinham armas na cintura e anéis nos dedos das duas mãos.
- Quando você ingressou no Recanto?
- Em fevereiro de 2008 – respondi. Não lembrava o dia exato.
- Qual foi sua primeira impressão do que era aquele site?
Era (?), pensei, então até o Recanto foi liquidado... Os estrategistas não brincaram. Tratava-se mesmo de uma limpeza.
- Veja – suspirei - para uma pessoa como eu, ingressar num local como aquele equivale mais ou menos como a sensação de um cego que recupera a visão. E depois, ninguém me perguntou nada, mas me deram muitas respostas.
A claridade da sala às vezes oscilava. Eles anotavam tudo rápido, mas de uma forma um tanto displicente.
- De quem você se lembra?
Respirei fundo. Sou péssimo para nomes. Um dos inquisidores, mais jovem, mais amável a seu modo, disse estar ciente da minha boa vontade e, devido à exaustão de todos, se o bom senso prevalecesse não havia o que temer. Contei-lhes, humildemente mirando o chão, porque quando alguém usa coldres e lhe faz perguntas deve-se mirar o chão, que não sabia muita coisa. Confessei-lhes mais uma vez meu atrapalhamento sobre a questão dos nomes, até que outro inquisidor, mais velho, e indicando uma imensa vontade em terminar logo, pediu-me com um sorriso forçado o que fosse possível lembrar, impressões, perfis, características...
- Lembro de uma moça que podia ser neta do Drumond, o poeta – a palavra poeta parecia incomodá-los – e de outra, que atuava na área da cura, e de outra, que promovia encontros poéticos – de novo se incomodaram – ah, havia um senhor que ouvia a respiração das estrelas, um rapaz que fazia música tão bem quanto versos, e uma moça também versista e musicista que cunhara a seguinte frase...
Nesse ponto me interromperam. Não queriam saber de frases. Com um gesto de cabeça, expressaram um prossiga, e prossegui.
- Havia um homem que abençoava, outro que se dizia dono da lua, uma mulher que adorava o mar, e um...- espremi o cenho, acho que era o único nome que eu lembrava sim, Menestrel do Amor! – exclamei, e eles anotaram. Queria contar-lhes que o tal Menestrel me arrancara lágrimas mas isso era irrelevante. Daí me lembrei de outro poeta, e incrível como essa palavra causava-lhes, de fato, um agudo desconforto. Lembrei-me também de que muitos se diziam brasileiros e entusiastas. Depois me calei, um pouco abatido. E talvez com um pouco de raiva, pela circunstância. Acabei dizendo que no Recanto haviam muitos mentirosos.
- Mentirosos?!
- Sim, colocam em seus perfis que não são profissionais quando de fato o são, se dizem amadores ...- daí calei-me depressa porque entendi tudo. Além de terem queimado os livros do país, o que estava em jogo era um processo que vinha paulatinamente acontecendo, ninguém percebera, e, é óbvio, os profissionais necessitaram de um local para se expressar. Meu silêncio abrupto foi providencial, pois os inquisidores amarraram-se na palavra “amadores”, buscando outros sentidos, e me livrando assim de trair, digamos, companheiros.
Findos alguns instantes, eles se levantaram, eram 3, ainda que o terceiro pouco se dava pela minha presença e fumava cigarros sem filtro. Agradeceram-me a boa vontade, disseram que o caso estava encerrado e, só por curiosidade, o mais velho indagou:
- Você chegou a realmente a conhecê-los?
Fiz um não com a cabeça assim meio desleixado, vendo a porta entreaberta e a despedida em fase de conclusão.
Foi só quando me vi longe da “delegacia” o suficiente que me apoiei numa árvore, meio fraco talvez, falta de açúcar no sangue, e os nomes começaram a surgir na mente, um depois do outro, amigos, pensei, amigas, como se os conhecesse desde sempre. E senti saudade.