FARPAS
Havia um cheiro de formiga morta no ar. Havia sim. Isaac passou o dia calado, fugindo das pessoas. À tarde, quando a sombra das bananeiras e dos coqueiros do quintal já haviam deixado a areia boa de brincar, fez castelos e cidades, inventou mundos, pessoas, reis, guerreiros… naquele mundo ele era entendido e respeitado. Ele e Janis, a gata, que recebera este nome quando a professora de inglês disse:
— Agora vocês vão ouvir um funk, e colocou “Try” pra tocar.
A gata não tinha nome ainda, e Isaac concluiu que ela combinava com aquela cantora de voz rouca e triste. Ele vivia naquele mundo de areia, coqueiros e bananeiras quase todos os dias. Mas, naquele dia, especialmente, havia um cheiro de formiga morta no ar. Havia sim. Seis da tarde. Por algum motivo que só os cientistas ou padres devem conhecer, Isaac sentiu um calafrio quando viu o pai na porta da cozinha – que dava para o quintal –, parado, com um semblante que, naquele dia, especificamente, parecia tão terrível que ele não pôde se mexer. Seu Antunes, furioso, cansado de mais um dia longo, vasculhou debaixo da pia e caminhou na direção do filho, que não teve tempo nem coragem de perguntar o porquê da surra que estava prestes a levar, mas pôde perceber que era um pedaço de arame o instrumento que seu pai achara ao acaso debaixo da pia. Movido pela inércia da ira, seu Antunes marcou as costas do filho. Isaac não sabia o que era inércia, mas naquele momento entendera precisamente o significado da ira.
Dona Elza fizera os curativos nas costas do filho. Ela e Janis eram os únicos seres com quem Isaac se sentia à vontade, mas naquela noite Isaac não dissera palavra alguma, pois cada vez que respirava, as feridas ardiam, como se o oxigênio fosse sal. Dona Elza também não falara nada, ainda atordoada pela incomum violência do marido. Isaac dormiu de bruços por muito tempo, até as feridas das costas pararem de minar sangue. Seu Antunes, quando percebeu que o filho transformara aquele respeito natural num medo que não lhe permitia controlar as próprias pernas, por um momento, sentiu remorso, que em muito breve se transformaria numa espécie de nojo daquela criança fraca, calada, que nem parecia estar ali.
E como as coisas podem sempre se tornar piores, certa manhã, Janis, a gata, pulou com dificuldades na cama de Isaac, deu um gemido gutural e morreu. Aquele dia ficara marcado na vida dele. Não só pela morte de Janis, mas porque teve vergonha de chorar por ela, pois Isaac chorou tudo o que ainda tinha na alma naquela fatídica segunda-feira, e tudo que lhe restara foram soluços secos e frustrados, implorando por uma lágrima. Dois dias depois, numa tentativa de tornar as coisas mais fáceis e vivíveis, Isaac pediu ao pai que o levasse ao circo. Seu Antunes não quis. Isaac chorou enfim, mas o choro era de raiva. E crianças não devem chorar por raiva.
Isaac estava só. Suas companhias agora ficavam por conta da imaginação. E a mais recorrente era Janis, a gata. Quando mudava um móvel de lugar, esperava que ela viesse farejar para se adaptar à nova disposição. Por diversas madrugadas, acordou com o barulho da gata amolando as unhas na porta do quarto, e aquele desespero que só a saudade e a solidão são capazes de gerar transformou-se num enorme gânglio na alma, que poderia perfeitamente se dissipar em lágrimas. Porém esse era outro problema, algo definitivamente não as permitia cair, embora definitivamente seja um advérbio que altera pra sempre o sentido de qualquer verbo. E pra sempre dura tempo demais, principalmente pra uma criança.
Na vizinhança, Isaac fez um novo amigo, após muito tempo de solidão muda.
Pedro.
Jogavam bola todos os dias. Atiravam pedras na barragem para ver qual pedra batia mais vezes na água até afundar, assustavam as moças depois da missa estourando os estalinhos que compravam na banca do seu Sales, faziam tudo juntos. Foi Pedro que ensinou Isaac a nadar, nos fins de tarde, na barragem, na qual, até então, Isaac morria de medo de entrar.
Na travinha de um fim de semana, anoitecendo já, alguém chutou a bola para longe, e Isaac, num impulso, foi buscá-la. Correu pela estrada barrenta, mas teve que pisar no mato. Foi ficando distante dos outros, e a cerca, com o arame enferrujado, teria que ser vencida. Um grilo cantava, mas calou-se de repente. E agora só a respiração de Isaac rasgava aquele silêncio terrivelmente ensurdecedor. Teve medo de olhar para trás, então ficou parado. A demora fez seus amigos reclamarem lá atrás, na estrada, pois precisavam da bola. O menino continuava na sua luta contra o próximo passo. Um outro bicho qualquer cantava, não como o grilo, era um canto diferente, furioso como os olhos do seu Antunes àquela noite. E o medo aumentou. Os amigos se impacientaram, então Isaac respirou fundo, passos firmes, coração acelerado, agarrou a bola, deu as costas para o longe, desconhecido, imaginando espíritos, feras, plantas carnívoras, insetos venenosos, e correu de volta, fechando os olhos ao passar pelas farpas enferrujadas.