Mim Ser Eu

Sou mim. Não sou eu. Ser mim é ser o objeto do eu. Eu mesmo, não posso ser.

Eu sem coisa alguma sou puro desperdício. O eu precisa de mim quase como uma obrigação. O eu é sede com a garganta seca, aliás, é não ter nem garganta, nem boca, nem... Mas a sede...

Onde está a sede?

Em mim.

Só a sede não existe. Quer dizer, existe e não se manifesta.

E se se manifestasse?

Nunca revelaria completamente, nunca se revela. Por isso, preciso de mim. Mim é o único que o eu confia de olhos fechados. Mim ser.

Mim é o confidente do eu. Exclusivo. Acho até que eu não posso ter outros confidentes. Eu e mim desenvolvemos um vocabulário próprio. Comunicamos-nos por meio de sinais e nem os conhecemos. Que importa? Se há comunicação os signos não importam. Ou quando se lê, o receptor fica olhando palavra por palavra, as suas formas e detalhes? Bom... o que é certo é que cada um comunica-se do modo que lhe convier.

Nem sempre o eu se comunica com o mim. Nos tempos de hoje é proibido. O eu tem que falar com todos os outros. O eu no mundo, um número insignificante perdido entre bilhões de outros números também números perdidos.

E o mim? Tão perto, tão próximo, que a vista fica embaçada. Ver longe é mais confortável, sem dúvida. Ver longe tem lógica, tem forma. O detalhe das letras, as regras de concordância empregadas de acordo com a norma culta, o arranjo fácil e claro das frases.

Ver perto é para poucos. Para loucos.

Porque tem que ver sem pensar, sem ver nada. Sem conseguir definir. Sem identificar coisas. Sem determinar. O que há perto é uma coisona, um caos universal.

Eu.

Nesse não entender mim acaba entendendo.

Como?

Já disse que os signos não importam. É uma ligação em um ponto desconhecido em que o eu consegue escapar e chegar até mim.

Do céu, a chuva chove em mim. Do eu, o puro chove em mim.

Pequeninos cospúsculos diferentes ora mais leve, ora mais pesado, ora mais doce ,ora mais salgado, ora mais ácido, mais negro, mais, mais, mais,... a chuva pura do eu. Bendito seja o céu, obra de Deus? Mim que não ouse responder...

Sinto muito. Sinto-me e é o que me resta a mim. Eu me sou. Eu me dou a mim e me sou.