Escurice no Espelho

Primeiro, o ser nu de frente para o espelho. A pele se descamando suavemente. Os tecidos se desfazendo aos poucos. Olhos, pulmões, músculos perdendo a integridade.

A libertação da sujeira impregnada na pele. Porque vem de fora, que vem do outro e se instala nela como parasita oportunista, modificando sua a sua maneira a constituição original. Pele, pelos, queratina, que impermeabiliza o ser.

Órgãos caindo no chão. Coração no chão. Sangue formando lago vermelho. Ossos se descalcificando. O cérebro que estava protegido pela caixa craniana finalmente cai, indefeso. Fragiliza-se.

Insensível e ininteligível, sobra o Nada. E o que há no Nada? O nada não tem limite, é imenso, agiganta-se diante de qualquer coisa. Quase que só há o Nada. A coisa que é quase inexistente. Uma chama fraca e opaca diante da imensidão da escuridão radiante. O Nada é Tudo.

Se o Nada é Tudo, e sendo eu alguma coisa, parte irrisória, mas parte desse todo, logo o nada está em mim. E eu, a coisa, sou Tudo também.

Voltando ao espelho...

...Tenho um choque. Não sei se há imagens, não mais me enxergo. Não sei se está quente ou frio, não mais sinto. Não sei se já conheço, não mais penso. Quanto ao som, só sei que há o silencio. Ele até pode dizer algo, mas não mais ouço. Que cheiro poderia haver? Cheiro de Nada. Cheiro de Tudo.

O Ser tornou-se etéreo. Imaterial. Não tem forma indefinível, nem peso, nem cor, nem nada. Fumaça que sai do nariz em dias de inverno. Gás que se liberta da carne e se junta com felicidade absurda ao Todo. Não! À primeira vista, tem-se a falsa impressão de que o vapor que sai se desintegra, perde-se. Quanta injustiça, olhos de plástico não vêem a Realidade. O vapor vai de encontro ao infinito, une-se ao Todo. A essência se expande, sai da própria coisa e liga-se ao universal.

A noção de materialidade se perde. Tudo que se sabia e sentia era coisa. Coisa alguma. A coisa é um tudo com início e fim. A ligação com o mundo dá outra percepção. Noção infinita, do Todo, do Nada. O saber se amplia tanto que não consegue pensar em apenas uma frase. O sentir tem inúmeros sentidos como se o ser fosse todo ele um órgão sexual, sensível e delicado ao extremo. Para tornar-me claro, a razão e a sensação desse momento pode ser representados por um quadro abstrato. Obrigatoriamente pintado por uma criança. Ou então, pode ser como ver o sol diretamente com os olhos. Ficou cego? Era exatamente o propósito. A coisa não suporta o Nada.

Deus vai se sentindo só. Incompreendido. Nem ao menos podem vê-lo, nem ao menos sabem o que é. Enganam-se, confundindo com si próprios. A coisa achando que é Deus, ou que Deus é uma coisa. Deus é muito maior. Deus é o mundo.

Tão triste, Deus que é o Todo, o Vazio, chora. E do vazio surge o físico, gotas de água. Chuva. Só ele tem a capacidade de ser ora físico, ora metafísico. Mas ele não perde sua realidade jamais. Quem se perde é a coisa.

O encontro com o Sol, com a Luz, com o Vazio. Com Deus. Iluminados serão aqueles que o conseguirem, após o processo de esvaziamento, da síntese. Ascese em busca de Deus, do Belo.

Depois disso, a coisa pode se coisificar novamente. O cérebro, os ossos, os músculos, os órgãos, a pele... A pele não vai mais se sujar, vai ficar tão limpa, tão vazia que será possível respirar inteiramente através dela. O mundo invadindo o corpo. A essência se expande, ilimitada, o contato direto com Deus. E finalmente, consigo mesmo.