Inútil promessa

Caminhava, aproximadamente, dois quilômetros para ir e dois para voltar do colégio. Era um garoto simples, não tinha muitos amigos, não por ser indesejável, não por tratar os outros da mesma ou de menor idade com maldade ou qualquer coisa que o fizesse uma pessoa má. Luis era calmo, reservado e não muito alegre, porém, possuía um interesse enorme pelos estudos. Certa vez ganhou um concurso de redação, e como prêmio recebera uma coleção de livros para colorir. Dentre todos, encantou-se por um dos exemplares que trazia imagens de um circo. Palhaços, trapezistas, domadores... Com a magia que aquelas páginas lhe trouxeram, surgiu o sonho de um dia... Quem sabe um dia... Um dia que fosse, conhecer um circo de verdade, promessa que lutou e conseguiu arrancar do pai e da mãe.

Filho de uma costureira tinha no pai, que trabalhava na construção civil como auxiliar de pedreiro, um amigo para todas as horas, todos os instantes. Jogavam futebol juntos, pescavam juntos, sorriam juntos e choravam juntos também. Não tinha irmãos, a mãe sofrera complicações no parto, impossibilitando-a de uma nova gravidez.

A família não passava fome, mas de tempos em tempos, dificuldades maiores surgiam, em virtude da diminuição de trabalho do pai e também da mãe; mesmo assim, viviam felizes com seus sonhos e privações.

Na escola, Luis era introspectivo em demasia, talvez pela humildade das roupas e dos materiais escolares. Assim, dia após dia em suas orações, pedia uma vida melhor para sua família, e também para as outras.

Ter seus brinquedos, poder ir à cidade, tomar refrigerante, comer pipoca, enfim, fazer tudo que uma criança na sua idade, com melhores condições, fazia.

Quando os pais tinham muito trabalho, e o dinheiro aprecia um pouco mais, até podia-se fazer, no mínimo, alguma vontade do garoto Mas em contrapartida, nesses tempos, Jorge, o pai, adotava uma outra identidade, desperdiçava quase tudo que ganhava no jogo de cartas, restando à Luisa, a mãe, as despesas da casa.

Ela não se incomodava com a situação, já que quando o trabalho era restrito, Jorge passava a maior parte do tempo em casa com a família.

O verão chegara e como moravam próximos a um balneário o trabalho para ambos aumentava consideravelmente. Jorge e alguns amigos, que também trabalhavam na construção civil, foram contratados para trabalhar em um edifício, o primeiro do balneário mais próximo. A família ficou feliz, seria a oportunidade de comprarem uma casa, simples, para depois ampliarem e deixar de pagarem aluguel.

Luisa trabalhava dia e noite; Luis a ajudava. Jorge mandava uma carta por semana, e jogava cartas todos os dias.

Havia um mês e dois ou três dias que Jorge fora para o balneário, quando o responsável pela obra bateu a porta de Luisa. Ela pensou o pior; Luis nem pensou, desatinou a chorar. O chefe da construção acalmou os ânimos. Jorge sofrera um acidente, não muito grave. Estava internado no hospital do próprio balneário, cercado de cuidados e despesas pagas. Voltaria a andar em quatro ou cinco meses no máximo, e para casa retornaria em uma semana exata. A esposa sentiu um alívio mesclado ao desespero, o filho, medo paralelo à incerteza.

Luis sentou-se nos degraus que davam entrada ao quintal e pensou aos soluços...

“Nunca mais vou jogar bola com meu pai...nunca mais vou pescar com ele...e quem se não for ele vai me levar ao circo...mamãe não pode é muito ocupada trabalhará demais para sustentar a mim e meu pai... e eu só poderei ir quando estiver grande mas também não poderei vou estar trabalhando para cuidar da mamãe e de meu pai que estarão velhos e fracos e não conseguirão caminhar até a cidade onde o circo estiver...e se morrerem não terei alegria para rir do palhaço...não me farão felizes...meu pai e mamãe estarão mortos e ficarei só no mundo...”

Luis permaneceu sentado naqueles degraus, feitos de pedras e barro. Apoiava a cabeça, que pesava mais a cada instante, numa velha e apodrecida cerca. A noite chegou tomando por completo todo o úmido chão, inundado ainda mais pelos prantos do inconsolável garoto.

Luisa, quando deu por si já eram dez horas, chamou o filho, e com os olhos vermelhos de tanto chorar, abraçou-o por um longo tempo tentando acalentar o pequeno, porém sofrido, coração de criança.

Jorge chegou em casa exatamente uma semana depois da visita, não muito agradável, do responsável pela obra. Luisa e o filho choraram ao ver o homem forte e bem disposto, praticamente inerte, na cadeira de rodas cedida pela empresa.

O tempo girava mais rápido que as rodas da cadeira e mais lento que os pensamentos de Jorge. O pobre homem não suportava mais a vida que estava levando. A esposa e o filho trabalhavam para sustentar a casa, já que a indenização e a ajuda de custos, prometida pela empresa, ficara somente nos papéis, ao menos nos três primeiros meses da invalidez de Jorge.

Ao completar sete meses na cadeira de rodas, um homem bem trajado, com um luxuoso automóvel, parou em frente a humilde casa. Era o advogado que viera acertar as contas do auxiliar de construção. A felicidade tomou conta de todos. Num envelope branco, aos cuidados de Jorge Alves de Lima, com o timbre em letras azuis e vermelhas da Empreiteira Beira Mar, um cheque com as cifras correspondentes a ajuda de custos e a indenização do funcionário 0013-7, transformaria a vida daquela família.

No décimo mês após o acidente de Jorge um milagre aconteceu. Com a ajuda do filho, agora um ano mais velho, o homem, que estivera invalido por longos meses, inicia uma caminhada do quarto até a cozinha. Um brilho de sol antes nunca visto, ou nunca percebido, iluminou toda a vila, e os pássaros cantaram diferente do habitual, transparecendo uma espécie de parabéns ao acontecido.

A vida voltara ao normal. Cadeira de rodas naquela casa não existia mais. Fora levada um dia antes da mudança para a nova morada da família. A alegria que reinava era de tamanho imensurável. Jorge começou a trabalhar novamente. Mantinha na gaveta do novo guarda-roupa as economias provindas do tempo de invalidez. Luisa vivia melhor, assim como o filho, que melhorara sua personalidade e era um novo garoto, mais extrovertido, mais alegre e ainda mais interessado pelos estudos; não esquecera, por certo, o sonho de um dia ir a um circo de verdade.

De todas as modificações, para uma não existiu remédio, Jorge e o jogo. Continuara jogando, mas agora, com mais dinheiro, a freqüência era maior tanto quanto o valor das apostas, que dia a dia esvaziava a gaveta das economias.

Como nada é eterno, ainda mais dinheiro, numa noite, véspera de feriado municipal, tudo se foi. Jorge iniciara a jornada cedo. Ganhava um pouco ali, perdia grande quantia aqui, recuperava acolá, drenava novamente os bolsos por ai...Eram seis horas, os galos iniciaram sua sinfonia, o ar de inverno e a neblina davam ao lugar aos primeiros raios de sol, amenizando o frio e trazendo a música de todas as manhãs da pequena vila.

Jorge gritava que pagaria o que ficou devendo, Pulo, irritado e com sangue nos olhos, urrava de ódio riscando uma faca nas paredes do bar. Ninguém falava, todos mudos e retirando-se aos poucos, “pé ante pé”, buscando a fuga e o “lavar as mãos” a respeito da discussão. Paulo, como se tivesse cegado a todos, numa rapidez e numa força descomunal, arremessou uma mesa ao encontro de Jorge, que, ao tentar se esquivar do pesado objeto, projetou-se à frente assinando sua sentença. O descontrolado homem desferiu dois golpes no auxiliar de construção, um no pescoço e o outro na altura do abdome. Jorge ainda tentou levantar-se, mas o sangue vertia com tanta rapidez e intensidade que nem um último suspiro dera. Faleceu ali mesmo, à porta do bar e com uma dívida mesquinha de alguns trocados, que não daria para comprar meio caixão, o qual apodreceria antes do corpo.

Enterram Jorge no dia seguinte. Chovia pouco. Um frio suportável para um enterro, mas de imagens que machucavam qualquer um que tivesse um coração.

Luisa e o filho foram os últimos a deixar o cemitério. Luis ficara um pouco mais, tempo suficiente para fazer um juramento...

“Meu pai, assim como esta chuva que molha. Assim como o sol todos os dias nasce em alguma parte do mundo. Pela tua vida. Pela vida de mamãe. Pelo Deus Senhor de todas as criaturas vivas, boas ou más. Por esta terra que te cobriu. Pelas palavras do vigário... “O Senhor é meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranqüilas. Refrigera minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque Tu estás comigo; a tua vara e teu cajado me consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias de minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias...” Juro a ti meu pa,i morto de corpo, mas vivo em meus pensamentos...Que vingarei tua morte... Mesmo que leve o último suspiro de minha vida e apague por completo a chama de minha bondade... Prometo-te. Amém”.

Luis descera do ônibus, era sexta-feira, acabara de chegar do trabalho na cidade. Luisa o esperava no portão, tinha uma surpresa para o filho. O jovem rapaz, agora com dezessete anos, faria dezoito no domingo e a mãe havia preparado uma grande festa. Luis abraçou a mãe e entraram os dois sorrindo.

Eram oito horas quando o rapaz beijou a mãe e disse que sairia. Ela, apreensiva, pediu que o filho se cuidasse, Luis sorriu e a tranqüilizou. Ia ao bar tomar uma cerveja antes do jantar, voltaria logo. Enganou-se. Ao chegar, avistou, encostado no balcão dos fundos, próximo à mesa de jogos, o assassino de seu pai.

Paulo cumprira alguns meses e fora solto por bom comportamento. Um longo fio de ódio percorreu todo seu corpo, que por alguns instantes, permaneceu estático à porta, relembrando o dia do seu juramento e a imagem do pai falecido. Num ímpeto de raiva saiu em destino. Abriu a porta dos fundos de casa, foi até a cozinha e apanhou uma faca. A mãe perguntou se poderia servir o jantar, ele nada respondeu.

Corria como um louco. Chegou ao bar ofegante, buscando forças para vingar-se. Avistou Paulo no mesmo local que o vira tempos atrás. Caminhou até ao assassino de seu pai, sacou a faca debaixo da camisa gritando “desgraçado”. Paulo virou-se rapidamente. Luis desferiu um golpe; Paulo defendeu-se com o braço, que prontamente manchou o chão, e mesmo sangrando, com um movimento quase invisível apanhou um revolver das costas e disparou três tiros no jovem, todos no peito. Luis ficou agonizando, ninguém socorreu; morrera aos pés de uma mesa de jogo, mesa em que seu pai adquirira a vida eterna e uma dívida de alguns trocados que, com o passar do tempo, não se compraria um singelo ingresso para um circo.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 04/03/2008
Código do texto: T887469
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