Permuta

“O presente, o passado e o futuro são feridas abertas em nossa sociedade. Vivemos em uma era de constantes evoluções e revoluções, as quais, rompem fronteiras nos mais diversos horizontes da administração e, assim sendo, estimula pesquisas, comprovações e até mesmo refutam programas sociais já inerentes em nossa cidade, tão abandonada e vítima do descaso.

Controvérsias, paradoxos ou caminhos bifurcados tendem a mapear nosso chão e nossos passos, mesmo que ainda acanhados. Da tecnologia desvairada e na velocidade da luz à “carroças e cavalos”, que permanecem ilustrando algumas imagens em pequenos bairros e outros centros populacionais já industrializados, a sociedade atual constrói um amanhã regrado pela violência e o poder do dinheiro. Assim, somos escravos estrangeiros em nossa própria cidade, privados de educação, saúde e pensamentos.

A manipulação das massas quer no campo religioso, ideológico... enfim, as mãos que controlam os fantoches permanecem abarrotando bolsos e contas a custa do suor e do sofrimento de todos aqueles decapitados ou levados a pôr abaixo, sonhos e ideais de uma vida digna, provida de discernimento e intolerância à corrupção e comando abusivo de elementos sociais que continuam no altar do “ter”, construído sobre o enorme alicerce, por tempos explorados, dos cidadãos que cultivam a igualdade social e humanitária...”

Findara assim o longo discurso. Pelo rosto exaltado e gestos inflamados de vigor e indignação, observava com um riso de êxtase a platéia que aplaudia e gritava sem parar o seu nome.

Francisco, casado, pai de uma filha e líder comunitário, buscava pela terceira vez a cadeira de prefeito da cidade em que nascera e fora criado. Indivíduo de respeito, proliferador da moral e dos bons costumes. Era proprietário de um singelo supermercado no bairro onde morava. Os negócios não andavam muito bem, mas Francisco não perdia as esperanças. Jogara, na atual campanha a prefeito, todas as suas cartas, tendo conhecimento, que a derrota seria a total falência de seu comércio.

A esposa e a filha o alertavam para os riscos; apresentavam as contas que se acumularam através dos anos em virtude das investidas de Francisco na carreira política.

O tempo corria, e o dedicado e atencioso pai de família de antes, tornava-se aos poucos, um homem distante e nervoso. As reuniões com os partidários e coordenadores de campanha, eram a cada semana, mais freqüentes e longas, restringindo assim, seu tempo com a esposa e a filha de quatorze anos. Por este motivo, as discussões em casa tomaram proporções antes nunca vistas; gritos e palavras ásperas machucavam a todos; objetos quebrados e silêncios ensurdecedores cerravam os sorrisos e dilaceravam as três almas, que antes somente harmonia e amor conheciam.

Francisco, nos meses que precediam o dia da votação, continuava suas reuniões e quase não mais aparecia em casa. A esposa e a filha sofriam com aquela situação. A moça um tanto mais, estava a poucas semanas se seu décimo quinto aniversário. Chorava todos os dias, imaginando a não realização da festa, a qual toda a família planejara desde seus treze anos de idade.

A situação tornou-se mais difícil, tanto para Francisco quanto para a família; o dinheiro estava acabando e o homem cada dia mais afastado. Não bastasse a restrição de verbas, o candidato a vice abandonou a campanha. Os coordenadores ficaram imóveis. Francisco pensava também em desistir, mas era tarde demais. Se abandonasse a candidatura estaria por completo falido. Pensava em uma solução, mas não a encontrava. Marcou então, uma reunião extraordinária, para buscar uma solução ao problema do partido e, principalmente o seu, pois agora o líder comunitário, o cidadão engajado nas causas sociais, tivera adotado outro caráter, e o discurso do momento não condizia com o antigo, totalmente desmembrado do corpo anterior; um discurso de esquerda, mas maquiado com o sofismo e persuasão centrados no interesse próprio.

Francisco deu início à reunião. Sentaram-se todos. Na pauta, a catastrófica situação. Horas a fio correram e nada fora decidido. Aos poucos os partidários e coordenadores iam deixando a sala. O candidato a prefeito ficara sozinho, buscando no nada uma alternativa para o labirinto em que se encontrava.

Um frio percorreu-lhe a espinha ao ouvir de súbito aquela voz calma e polida:

- Dá-me tua filha, que te financio o restante da campanha, ajusto teu comércio e ainda sirvo-te de vice!

Francisco voltou-se assustado para a janela lateral da sala. Avistou um jovem de uns vinte e poucos anos, bem trajado e de um semblante imponente e respeitável.

- Minha filha para casamento ? Indagou Francisco com um tom severo, mas de certa forma aliviado.

- Um compromisso Sr. Francisco !

- Ma ela só tem quatorze anos, acho isto um tanto precoce... não concordas ?

- Aguardo os quinze anos... e com o seu consentimento, não haverá problemas.

- E em quanto estamos falando par uma ajuda de custo à campanha? Ë claro...

- Sr, Francisco, disponho desta quantia. Rabiscou o rapaz numa folha amassada que se encontrava sobre mesa.

- Quanto? Mas em cruzeiros tenho de tomar caneta e papel para fazer as contas!

- Não contando, obviamente, com as despesas da cerimônia, que faço questão de ficarem aos meus cuidados.

- Mas é esta quantia mesmo?

- Como já lhe disse, é o que disponho.

- Sim, ouvi! Mas e minha filha? De onde a conhece?

- Há algum tempo a observo. Sei de suas virtudes e também admiro sua beleza. Além do mais, busco, como também já lhe falei, um compromisso.

Os dois cavalheiros continuaram a conversa por um longo tempo. Francisco estava encantado com o moço e com sua forma de encaminhar a situação.

Saíram da sala abraçados e de uma intimidade que parecia existir a anos. Falavam agora de assuntos formais; datas, preparativos, locais prováveis...

Ao chegarem na casa do candidato, a filha e a esposa espantaram-se com a alegria de Francisco, que as deixou a par de toda a conversa. Bastaram apenas poucos minutos na sala de estar para que tudo estivesse em família, agora com um membro a mais. O pai, a mãe e principalmente a filha pareciam estar enfeitiçados por aquele belo rapaz; tão educado, tão distinto...tão rico...

A votação fora encerrada às cinco horas da tarde. Ansiosos e confiantes, os partidários, coordenadores e os candidatos a prefeito e vice, aguardavam a vitória como certa. Com a última urna aberta e o último voto registrado, Francisco Hansck e Arion Belial foram eleitos com setenta por cento dos votos válidos.

A festa pela conquista do poder da cidade seria no mesmo dia do aniversário da filha de Francisco, sendo também o dia da confirmação do pedido do Sr. Belial.

Os convidados chegavam e iam acomodando-se no vasto salão. Na parte frontal e superior, um glamuroso altar fora construído para a cerimônia. Passaram-se trinta minutos, ou mais, do horário marcado. O noivo ainda não havia aparecido; a noiva estava dentro do previsto. O atraso foi preocupando os pais da noiva, não havia nem sinal da limusine que traria a futura esposa do Sr. Belial.

Francisco, agora desesperado com o atraso de uma hora, foi saber da filha. Tinha um nó na garganta e um amargo pressentimento. Ao avistar a limusine estacionada em frente a sua casa ficou aliviado. Parou o carro e desceu. Caminhava ao encontro do longo e negro automóvel afrouxando a gravata. Pôs as mãos próximas ao vidro para melhor enxergar. Avistou a filha vestida de branco e chamou-a brandamente. Puxou a maçaneta da porta, abriu com lentidão observando o escarlate crepúsculo que pintava o céu, mas não tanto escarlate quanto o sangue que corria da garganta aberta da filha.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 04/03/2008
Código do texto: T887462
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