Pensamentos manufaturados

Chovia muito. Uma criança ao colo da mãe gritava estridente. O pai, como um louco guiava descontrolado o velho automóvel com velocidade ao hospital. As condições de dirigir naquelas circunstâncias era quase impossível, ainda mais com a pressa do casal em chegar o mais rápido ao Pronto Socorro. A criança chorava incessante, a mãe buscava formas de acalentá-la, e o pai, em sua desvairada angústia, não vira o animal na pista. Tentou desviar, capotaram até encontrar um ponto de ônibus e um mendigo protegendo-se da tempestade.

Teodoro acordou de sobressalto e completamente suado. Levantou-se e foi até a cozinha beber água. No antigo relógio de parede marcavam três horas, era madrugada de segunda-feira, em três horas e meia chegaria o momento de ir para o trabalho. O rapaz retornou ao quarto e deitou-se novamente. Não se cobriu, ainda estava um pouco suado. Apagou a luz e fixou os olhos na escuridão. Uma acanhada lágrima correu-lhe pelo jovem rosto, findando o caminho na pequena e bem feita orelha. Teodoro tinha as belas feições da mãe, salvo o espírito, que não se sabia de onde provinha a semelhança.

Parecia viver num mundo em preto e branco. Possuía uma desconfiança sem precedentes; só falava se lhe perguntassem algo. Há sete anos trabalhava em uma empresa distribuidora de artesanato como ajudante de expedição de mercadorias. Levantava-se para o trabalho por volta das seis e meia, vestia-se, tomava uma xícara de café, comia duas fatias de pão de fôrma com doce de abóbora ou de leite, dependia de qual encontrasse primeiro, mas sempre tinha os dois em casa. Nos longos sete anos, fariam oito em um mês, tomava um atalho para economizar tempo. Era um vasto e verde gramado com um caminho sinuoso somente no meio, em virtude de alguns arbustos que ali se encontravam. Havia também ao longo do trajeto uma cerca, que servia de divisão para o gado e as ovelhas, mas também de pouso para algumas corujas.

A desconfiança de Teodoro ultrapassava todos os limites; que até mesmo as inofensivas corujas eram objeto de cuidado do rapaz ao longo dos anos. Não existira sequer um dia que por lá passou, que ele não dividira com os pássaros a mesma capacidade de girar o pescoço trezentos e sessenta graus. Tinha tanto receio das aves que permanecia caminhando a passos largos em direção ao outro lado do campo, mas com os olhos tão azuis e esbugalhados quanto o céu voltados sempre para trás.

Os atos do pobre rapaz eram motivos de falatório em todo o bairro e no local de trabalho. Parecia estar a todo momento pensando, maquinando algo. Constantemente era flagrado sussurrando e com o dedo indicador batendo na cabeça. Era portador de um triste e misterioso semblante, talvez, ou com certeza, por ter perdido os pais aos dez meses de vida e viver de favor na casa dos tios, que o exploravam e faziam pouco caso de suas necessidades.

Teodoro mantinha trancado em um velho baú algumas fotos, jóias e pertences dos pais, além de alguns amarelados manuscritos seus. Já que não era muito de falar e não tinha amigos para desabafar, buscava no papel e na caneta o refúgio necessário para suas mágoas, sonhos e talvez amores.

Eram oito horas da noite de uma quinta-feira, Teodoro chegara do trabalho. Foi ao quarto, ajoelhou-se, rezou e chorou muito. Chovia torrencialmente. As lágrimas e as orações eram devotadas ao dia do aniversário de morte dos pais. Abriu o baú e apanhou algumas fotos. Beijou o retrato do pai, após um breve instante, fixou o olhar inundado de pranto na foto já envelhecida da mãe. Idolatrou-a por minutos e beijou-a ardorosamente; fora ela que, segundo contam, o salvou da morte no fatídico dia. Apanhou roupas e foi ao banho. Cometera um erro devido ao transe pelo qual passara, deixou aberto o baú, ato nunca acontecido. Ao retornar do banho passou pela cozinha e ouviu gargalhads e uma leitura sarcástica de um de seus escritos. O tio com voz aguda, depois grave, apresentava à esposa um momento de angústia do sofrido sobrinho:

“Tenho um enorme vão em minha alma que se pode traduzir com o momento de um dia cinza adentrando após lenta e temerosa ação de abrir uma cortina.

Este feixe de luz pálida que divide as duas partes do tecido é nada mais que um largo muro no qual me encontro inerte com a boca aos joelhos e os braços entrelaçando-os incessante e fortemente.

Uma turva e assustadora cascata de sangue e lágrimas derrama-se em ambos os lados inundando meus sentimentos perdidos no labirinto do constante padecer que aguardam um dia a saída encontrar.”

O rapaz baixou a cabeça e dirigiu-se ao quarto. Trancou a porta e lançou-se na cama. No dia seguinte acordou-se como de costume as seis e meia e foi para o trabalho. Cumpriu suas tarefas normalmente até o intervalo do almoço.

Uma nuvem negra pairou sobre a cidade e a chuva não tardou a cair. No início da tarde Teodoro foi flagrado tentando o suicídio. Nunca mais aquela existência conseguira tal ato.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 03/03/2008
Código do texto: T885601
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