O preço de uma ilusão

Não lhe fazia feliz a vida, mesmo que os versos, ou quem sabe a prosa, refletisse tal sentimento em suas leituras. Precisava do sublime sentir de corpo, sentia necessidade do constante toque da alma dia após dia. Cantava por anos o amor através da boca, através do peito; recebeu por vezes inúmeras a indiferença e o mal presságio.

Era uma garota como todas as outras de sua idade, com sonhos e desejos, temores e esperanças. Isabela tinha quinze anos, na verdade ainda não estavam completos, mas faltavam poucos meses e alguns dias; algo em torno de três ou quatro e doze ou treze. Vivia em uma espaçosa casa com um jardim enorme e uma tranqüila piscina. Freqüentava um dos melhores colégios da região, em que somente matriculavam-se crianças e adolescentes de classes sociais privilegiadas e com insígnia de família tradicional. Bela e de berço de ouro, causava suspiros e olhares dos rapazes e inveja de algumas garotas. Era um tanto isolada, talvez discreta, vivia com os livros nas mãos e um amor secreto na mente.

O pai, um banqueiro, falecera quando Isabela tinha doze anos de idade, deixando a família, que se restringia a três pessoas, em uma situação confortável, para não dizer despreocupada. A mãe, Clara, enlouquecera logo após a morte do marido, que fora assassinado na saída de um restaurante em virtude de um ato desesperado de um dos credores da casa bancária, o qual contraiu uma imensa dívida e fora ameaçado de morte caso não fosse efetuado o pagamento no prazo de trinta dias. O assassino foi preso e condenado a setenta e quatro anos de prisão.

Três anos se passaram até que Clara, graças a um intensivo tratamento, gozava por tempos distintos de uma aparente lucidez. Em um desses períodos casara-se com um jovem de trinta e três anos, quatro a menos que ela. Marcus, a partir da data do casamento passou a morar na casa, com a agora esposa e também a enteada.

Clara fazia todas as vontades do novo marido em virtude do amor descontrolado que sentia por ele. Estava completamente cega.

Conhecera Marcus no mesmo restaurante em que o pai de Isabela fora brutalmente ferido com quatro ou cinco golpes de faca, falecendo com um dos pulmões perfurado e uma hemorragia não contida por causa da demora do socorro.

O novo marido gostava do luxo e da boa vida que ali levava; não bastasse tudo, adquiriu uma obsessão por Isabela. Clara, que novamente voltou a apresentar um quadro de insanidade, passou a ignorar o marido e a filha, até chegar ao ponto de perder totalmente a razão, mostrando-se em completa loucura. Marcus com a situação posta em seu controle, gastava abusivamente os recursos financeiros da casa, deixados pelo falecido, em festas e presentes para Isabela, que o repugnava. A garota abandonou os estudos e passava dias enclausurada no quarto saindo apenas para alimentar-se e buscar suprimentos para sua reclusão, ações minuciosamente praticadas na ausência de Marcus.

Clara, entregue ao mundo vegetativo, tinha na enfermeira, contratada pela irmã, a sustentação da vida, o único sopro de existência que lhe tocava o corpo e balançava seus cabelos, ou melhor, os contados fios que ainda resistiam as suas crises. Tudo para a enferma era trazido na sala de visitas, onde a poltrona do falecido marido se fez suas morada e seu maior acalento, salvo os surtos de gritos e vociferações ininteligíveis.

Isabela completara quinze anos, era uma segunda-feira. Fria, cinza e pesada. Pela janela ela observava o movimento do primeiro dia útil da semana, exceto para a enclausurada, que de útil nada existia. As crianças passavam a caminho do colégio; os trabalhadores das indústrias marchavam esfregando as mãos e baforando seus cigarros; os executivos velozmente cruzavam as ruas por conta da necessidade de mais rápido chegarem as suas respectivas empresas.

A vida naquela casa continuou a mesma por tempos. Marcus e suas festas, Clara presa a uma poltrona e Isabela encarcerada no quarto em companhia do gato Zeus, seu amigo e única testemunha do sofrimento que transbordava o cômodo. Clara piorava a cada dia. Os médicos revezavam-se nos cuidados e uma enfermeira mudou-se para a casa da família. Dia e noite se passavam na espera do descanso, na hora em que o martírio daquela jovem e agora não mais bela senhora finalmente chegasse. A filha descia para ver a mãe duas ou três vezes por semana, temendo o encontro com Marcus, que sabia ela, estava aguardando um deslize par atacar.

Era domingo, dia de folga da enfermeira, que saíra bem cedo. Marcus ainda dormia. Fraca e com fome, Isabela, não ouvindo um barulho sequer, abriu a porta do quarto, desceu as escadas em surdo silêncio e foi até a dispensa. Apanhou o que achava necessário para uns três dias. Biscoitos, suco, batata frita e alguns enlatados, além de produtos de higiene pessoal. Pôs tudo em uma grande sacola e iniciou a subida da escada quando de súbito, lembrou da comida para o companheiro, afinal de contas, no quarto moravam dois, e ela sabia que Zeus somente comia ração, especialmente aquela que vinha em latas e tinham um aroma não muito agradável para ela, mas ele adorava. Voltou então à dispensa, pegou o necessário e continuou sua missão. Ao chegar em frente a porta do quarto encontrou-a aberta, estranhou, jurava tê-la encostado. Pôs a culpa no vento. Trancou-a, pegou a chave e enfiou na gaveta aberta da cômoda. Sorriu. Tinha cumprido sua pequena, mas importante tarefa. É certo que não vira a mãe e, nem um beijo lhe dera. “Mas amanhã é outro dia”, pensou. Com os mantimentos já seguros para os próximos três dias, desceria rapidamente e veria a mãe.

Esvaziava a sacola quando na parede a frente uma sombra se projetou, era Marcus; ela gritou, mas de nada adiantava, ninguém a ouviria. Impondo força bruta e agressiva lançou-a sobre a cama e, com um sinal de silêncio desabotoava a camisa e tirava a cinta. Isabela permaneceu imóvel, um pandemônio silencioso tomou conta do quarto e a espessa névoa da maldade humana era respirada pelos dois; um alimentando-se, outro sendo sufocado. Nos instantes que se sucederam, a mente de Marcus repetia o mesmo pensamento, que não poderia ser outro a não ser o de sentença cumprida.

A covardia estendeu-se por mais alguns minutos. Isabela era lançada nas paredes e de encontro aos móveis. Objetos maciços lhe eram batidos por todo o corpo; cabeça, estômago...

O sangue manchou as brancas paredes, o tapete bege, as inocentes bonecas e os sábios livros. O agressor saiu satisfeito. Trocou de roupa, desceu até a garagem, ligou o automóvel e foi visitar alguns amigos. Isabela respirava com dificuldade. Arrastou-se até a cama deixando um rastro de sangue e dor. Não dera nem tempo de alimentar Zeus, por isso o felino passava a áspera língua sobre cada poça de sangue que se formara ao longo do quarto.

A enfermeira chegou às oito da noite, Clara, enraizada na poltrona, balançava os braços e a cabeça incessantemente, balbuciando a rangendo os dentes com os olhos de um brilho morto e fixos no nada. Fora medicada e aos poucos se acalmou.

A segunda-feira amanheceu chuvosa, na casa um movimento contínuo de vizinhos e médicos foi constante durante todo o dia.

Terça-feira de um sol brilhante e um céu azul. Clara deixou a poltrona que permanecera por um longo tempo, fora transferida a um leito, em que passará a eternidade. Faleceu pela manhã, entre nove e dez horas. A enfermeira fora dispensada. Marcus cuidou de tudo, das flores, do cortejo e até mesmo da limpeza da casa. O enterro deu-se às seis horas. Pêsames, choro e falsidade; tudo sempre corre bem nesses momentos. Com tudo terminado, o rapaz foi refrescar a cabeça. Voltou para casa já era quarta-feira, sentou-se a mesa da cozinha, fez um café bem forte e o bebeu lentamente, assim como Isabela também desceu as escadas. Marcus, ao terminar o café, fixou os olhos no vazio e se pôs a pensar, diferente da garota, que o fitava com os olhos pálidos e inertes, tanto quanto o rosto.

Marcus, após exterminar todo o dinheiro deixado pelo falecido banqueiro, passava o dia inteiro fora a procurar emprego. Isabela percorria a casa dia e noite, não mais comia nem dormia, somente passeava pelos cômodos, prazer que lhe tinham privado por tanto tempo.

Eram seis horas quando Marcus chegou, cansado e muito nervoso. Diferente de outrora; quando somente subia as escadas, tomava banho, trocava de roupa e saia. Agora, ao chegar, dirigia-se primeiramente à cozinha.

Certo dia assustou-se com Zeus revirando o lixo em busca de comida. Chutou o animal, fez um café e sentou-se a ponta da mesa, com o gato prostrado na outra extremidade limpando-se. Isabela apareceu às costas de Marcus assustando o gato, que rosnou e fugiu. O rapaz, de sobressalto, saltou da cadeira virando a xícara de café sobre a toalha branca, que não tinha lembrança de tê-la ali estendido. A campainha tocou, foi atender um pouco trêmulo. Abriu a porta e prontamente foi empurrado. Caído, Marcus implorava mais prazo para o pagamento. Humilhou-se. Rastejou até a lareira para poder alcançar algo e se defender, não conseguiu. Ao tentar apanhar o ferro de mexer as brasas sentiu dois golpes de faca, um nas costas e o outro no pescoço. O vermelho do sangue tingia quase por completo sua camisa azul. Enquanto uma das mãos cobria o ferimento, com a outra procurava levantar-se. Mais dois golpes e a vida daquele corpo drenava-se como o sangue, que pesava em suas roupas esgotando as forças para inerte ali permanecer.

Fechou-se a porta. Isabela prostrou-se atrás do sofá observando, com um riso contemplativo e mudo, Zeus lamber o quente sangue que corria dos ferimentos e que somente pararia quando não mais do líquido da vida necessitasse a única criatura viva naquela casa.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 03/03/2008
Código do texto: T885599
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