A tempestade

Respirava profundamente. Movimento algum fora do normal não fizera, repetia por vezes tais atos parecendo sugar todo um vão de vida qualquer a sua volta.

O vento soprava com força. Árvores das mais variadas balançavam, as roupas nos varais também. Não indiferentes eram os portões que abertos batiam fortemente sem se trancarem. Ao longe assistia frondosas palmeiras que, com plenitude dançavam ao sabor do vento, punha medo nos fracos e desafiavam os fortes. Frases inesquecíveis vinham de quem não mais tinha essência em seus pensamentos, nem tampouco razão... “Deus somente está nos punindo” Tais pronunciamentos faziam-se por bocas balbuciando, sem a menor consciência do ato.

Roberto observava atentamente uma mudança que se dava na casa ao lado. Extrema era sua curiosidade, que estático buscava todas as palavras do senhor que a descarregava. Desciam-se cadeiras e uma mesa, enquanto isso escutava o idoso cavalheiro, que de cima do caminhão afirmava convicto, que a água do firmamento logo viria.

Sentiu medo. As gotas de chuva começavam a molhar seus pés e o vento fechava as venezianas das janelas. Energia elétrica não mais havia, assim o caos que se formava a sua frente pronunciava um sofrimento semelhante de tudo o que teria acontecido outrora, não pior em terror, saberemos que sim, mas o trauma fixou pavor e saudades em tudo que sopra; que sopra e faz os galhos serpentearem, o céu enegrecer, as ruas vazias ficarem e o coração aflito premeditar.

A energia elétrica voltou e retornou a findar. O filho sorria. Novamente um fio de medo percorreu sua espinha, não somente a dele, mas de todos que de olhos abertos permaneciam. O canteiro de rosas um tanto minúsculo, parecia sorrir ao forte vento e a gelada chuva curvando-se, tendo como trilha sonora não apenas o uivar dos sopros e o gotejar da límpida água, mas também os alegres gritos do último rebento da família.

Arriscar-se a sair não podia. Sentou no sofá da sala e pôs-se a observar a tempestade que pretendia subtrair a visão de mundo que ele mesmo formara. Não mais enxergava. A chuva fortalecia-se a cada instante, a energia elétrica dava sintomas de retornar. Tudo sinalizava para o seu devido lugar. Com a calmaria escutara um simples pedido: - Meus cabelos não!

Amargamente feliz e paciente sorriu ao assistir a cena do filho puxando os cabelos da avó. Chuva... Chuva... e mais chuva. Trovões, relâmpagos e vento, agora todos mais aflitos vislumbravam o trauma que lançava castigados corações ao pleno desespero.

A chuva iniciou um novo protesto. Torrente, ela impregnava a terra com sua existência e inundava a alma de todos que a observavam com respeito e temor. A energia elétrica voltara. O irmão de Roberto levantou-se, o banheiro, como de costume não procurou, abriu a porta lateral e novamente fez...

Murchavam-se as folhas, impregnava-se o odor. Roberto sempre buscou esquecer aquela cena que dias e dias repugnava sua educação, consternava seu bom senso e afrontava sua higiene.

Chuva... chuva ...chuva... Limpamos ao menos nossos corpos e não as almas.

... Almas não se limpam deste modo.

Ela, a chuva, continuava gotejando, agora um tanto mais forte que umedecia a estátua e o espelho que ornavam a entrada para os quartos. Um relâmpago clareou a mente de Roberto, apagando rapidamente os sentidos.

Após o breve transe pelo qual havia passado, buscou ainda um embrião vivo em seus pensamentos, mas segurou os sentidos, e somente assim a inércia mental dissipou-se exatamente como surgiu: do nada, por nada e em nada. O filho chorava baixinho dando um tom melancólico à melodia que o rádio replicava sem qualquer vestígio de instrumentos na triste canção que com voz... somente rouca voz pronunciava:

Last night I heard screaming

Loud voices behind the wall

Another sleepless night for me

It won’t do no good to call

The police

Always come late

if they come at all

And when they arrive

They say they can’t interfere

With domestic affairs

Between a man and his wife

And as they walk out the door

The tears well up in her eyes

Last night I heard the screaming

Then a silence that chilled my soul

I prayed that I was dreaming

When I saw the ambulance in the road

And the policeman said

“I’m here to keep the peace

Will the crowd disperse

I think we all could use some sleep”

Suspirou pesadamente, emoção igual já havia sentido, mas desta vez o ar quente que provém do nariz quando se está prestes a chorar, aqueceu seu corpo por inteiro, mesmo tomado pela fria brisa que adentrava juntamente com as partículas da chuva que até então não cessara. Sim, o rádio ainda sonorizava a harmonia das palavras pronunciadas de dantes.

A chuva? A chuva cessou. Repetiram-se frases, fragmentaram-se sentimentos, mas continuaram os problemas, tormentos e lamúrias. Findavam os pensamentos quando um outro relâmpago mostrou com seu brilho o céu, apresentando a realidade de tudo o que Roberto queria e desejava, e por tempos o lançava num mundo de desilusão.

A alvorada seguinte mostrava-se singular. O sol, mais radiante que nunca, não ardia em virtude da brisa amena que beijava as folhas das árvores, e secava as roupas nos varais. Estavam todos já acordados, Roberto tomou o filho no colo e dirigiu-se à frente da casa. Enraizou-se ao pé do frondoso e imponente cinamomo que agora apenas sorria ao leve vento, diferente da noite passada. O inocente, com os minúsculos e frágeis dedos, arranhava a áspera e grossa casca do virtuoso caule do dito cinamomo. O pai sentiu no peito algo entre um aperto melancólico e uma felicidade radiante, tão radiante quanto o sol que os iluminava; não se sabe ao certo qual das duas sensações mais forte apresentou-se. O garoto ainda arranhava a árvore, mas também grunhia e balbuciava o dialeto de sua condição perante os adultos. Roberto fixou com inércia seus olhos no nada, porém discerniu a linguagem de encantamento do pequeno ser diante do mundo por ele poucas vezes visto, tendo em conta que em raros momentos traziam o menino para fora, pensando de forma errônea, que assim poderiam o livrar do sofrimento vislumbrado por todos naquela casa quando do acontecimento trágico que sucedera tempos atrás.

Como teias balançavam os finíssimos cabelos da criança, agraciando-se à sombra da frondosa árvore com um sorriso a espera de dentes, mas de alegria despreocupada e pura, assim como a inocência deve ser.

Passava do meio-dia. Foram chamados para o almoço. Roberto bocejou ao ver o filho bocejar, talvez seja algo automático. Saíram da proteção da sombra e colocaram-se ao sol a caminhar até o interior da casa, neste breve espaço de tempo sob o brilho do astro rei, o pequeno sapeca, que ainda não caminhava, piscava constantemente a fim de proteger seus frágeis olhos claros, herança dos avós maternos que não mais neste mundo habitavam.

Roberto entregou o filho à avó, sentou-se a mesa e almoçou.

Passavam das duas horas quando Roberto tomou o filho nos braços, e com a caneta em punho escreveu um rápido bilhete à mãe que ainda adormecia:

“Vou ao cemitério, já estou levando flores e velas e, caso a senhora queira também ir, espero-te lá até às quatro. Beijos, Roberto. Ah, se quiseres levar algo fique a vontade...

Duas e quinze Roberto adentrou no cemitério, logo em seguida avistou a lápide, que era uma das primeiras da fila inicial. Não era difícil de encontrar a sepultura de Carla, havia sempre flores viçosas, velas e incensos, mas o que a diferenciava encontrava-se nos escritos do epitáfio, já que toda a comunidade sabia da tragédia que acometeu a pobre família:

“És ainda a razão de nossa vida, se o vento e a chuva te levaram foi em virtude de forças mundanas não o conseguirem, pois, somente assim conformo-me e entendo, que Deus com sua supremacia e sabedoria, fez, e acredito que faria novamente apenas com um propósito, fazer de mim e de nosso filho, homens tão fortes quanto a mulher que foste”.

Sentou-se com o filho e as lágrimas não demoraram a rolar pelo rosto sofrido do jovem, que por fatalidade ou vontade da Providência Divina, perdeu a amada esposa numa tempestade, restando-lhe a sublime responsabilidade de guiar pelos corretos caminhos da vida, uma existência ainda inocente, privada e castrada, por forças maiores, do direito de ao menos poder pronunciar a grandeza da palavra Mãe...

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 03/03/2008
Código do texto: T885595
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