Orquidário

Após cinco longas e angustiantes horas o veredicto fora dado. A indignação reinava em um lado da sala; pragas e juras de busca à justiça se faziam aos sussurros do outro lado. Com apenas uma baixa divisão gradeada de madeira nobre e escura, o tom da atmosfera mudava bruscamente. No espaço reservado ao acusado o alívio predominava e, o sorriso voltara a fazer parte daquele abatido rosto de outrora, mesmo que se tratasse de um sorriso nublado pela dor da perda e acariciado pelos dedos da liberdade. Henrique estivera duas semanas aguardando julgamento. Foi considerado inocente das acusações e o caso fora arquivado.

Permaneceu no banco dos réus por mais ou menos duas horas após o fim da sessão. Aguardava a multidão de repórteres, fotógrafos, curiosos e não simpatizantes com o veredicto dispersarem, para somente assim, retornar com tranqüilidade ao lar.

O táxi parou em frente ao número quatrocentos e seiscentos e seis da rua Almirante Borges, no bairro de classe média-alta, Jardim Quarup. Henrique desceu do carro, pagou o motorista e subiu as escadas que precediam o portão cinza de grades roliças e espessas. Apanhara na maleta um chaveiro dourado com um estranho símbolo gravado em negro, lembrando a estrela de Davi mas com menos pontas, talvez cinco e com somente uma voltada para baixo. Perdeu ali alguns instantes. Observava a rua e as árvores, as quais não mais possuíam folhas, dando-lhes formas sombrias e melancólicas naquela tarde escura e pesada de abril. Uma solitária lágrima correu quente pelo rosto do altivo e elegante homem que, envolto pelo ar mórbido da cena que protagonizava, buscava no vazio de sua alma uma explicação para tudo, ou simplesmente, uma razão para nada.

Tinha o olhar úmido voltado para a fechadura, parecia estar preso por alguma força do lado de fora. Segurou com firmeza a chave e, com um esforço fora do habitual, abriu rapidamente o portão e logo o fechou. Caminhava lentamente pelo gramado repleto de estátuas e arbustos viçosos, molhados pela fina chuva que caía com timidez desde a saída do tribunal.

Henrique atravessara toda a extensão da casa e do jardim de entrada com passos suaves e pausados. Correu os olhos ao redor e sentou-se num dos bancos que ali permaneciam desde a última estada sua naquele pedaço de reflexões, os fundos da casa. Uma borboleta pousou em seus ombros, com as asas muito úmidas e pesadas. As lágrimas vieram mescladas com a lembrança viva da história contada várias vezes pela mãe adotiva de Henrique. Sentiu um peso nos ombros e a brisa sussurrar-lhe:

“Estava eu em meu quarto pensando na vida, quando pela janela entrou uma borboleta multicolorida. Na verdade suas asas tinham quatro cores, as quais traziam-me muita tristeza. Tentei afugentá-la, mas permaneceu ali e pousou ao meu lado. Curiosa perguntei como conseguira asas tão belas. Ela, com uma aparência apreensiva, apenas moveu as asas e, com um breve sorriso respondeu:

- As cores em minhas asas foram surgindo a partir das experiências pelas quais passei durante a vida. Quando eu nasci, era a única com algo diferente das outras. Logo percebi a beleza do ambiente onde morava, e foi assim que apareceu em ambas as asas a primeira faixa, que considero a linha da vida. Surgiu então outra: que denominei conhecimento.

O tempo foi passando e em minha existência tudo era motivo de alegria, conheci o amor de uma forma, que talvez os humanos nunca terão em suas vidas. Depois ganhei esta cor, que chamo esperança, que, infelizmente, contrasta com o passar dos anos e colide frontalmente com minha primeira decepção e ódio pela vida.

Por último, a faixa da solidariedade, que devo a minha experiência com a desigualdade daqueles que tanto auxiliei e muito dividi o pouco que possuía, e que nem sempre tomam atitudes nobres e racionais com quem se dá ao próximo antes de se dar a si mesmo. E é, por esta passagem de minha vida que estou aqui perto de você, para provar minha nobreza frente aos humanos, pois em breve minha existência findará, surgindo então, em minhas asas a real última cor, que não saberei qual, mas você verá.

Então, a borboleta bateu as asas em forma de sorriso novamente, mas agora como se fosse a última vez e caiu sem vida. Via-a dar o derradeiro e agonizante bater de cores e morrer. No mesmo instante uma leve brisa, e uma densa névoa apresentaram a cor da morte paralela com a tristeza que reinou. Estava tudo completo. Como foram as alegrias, neste ultimato de tempo, fizeram-se também as angústias”.

A campainha tocou estridente. Eram oito horas da manhã. Henrique acordou-se assustado, não tinha lembrança de ter caminhado até o quarto na noite que passara. Levantou-se meio tonto e foi até o portão. Vestia um roupão azul marinho e estava de pés descalços. Era a nova empregada, viera fazer a limpeza; uma, das duas semanais, pelas quais fora contratada. Henrique voltou ao quarto, fechou a porta e dormiu novamente.

Carmem estendera a última calça no varal. Secou as mãos no avental tão molhado quanto a grama e as calçadas. Avistou no orquidário uma velha senhora, que parecia estar cuidando das plantas. Tinha um corpo magro, mas de aparência não frágil. A nova empregada acenou com uma das mãos, na outra, já tinha tomado a bolsa para ir embora. Por entre as orquídeas, a mulher fez um gesto de adeus e sentou-se num banco observando as múltiplas cores com um trêmulo sorriso entreaberto.

Três dias se passaram desde o julgamento. Henrique ainda não havia voltado ao trabalho, dava apenas recomendações pelo telefone.

Passavam das oito e meia quando Carmem chegou. O portão estava aberto. A empregada pisava em cristais ao encontrar Henrique sentado no sofá da sala folheando o jornal. Ela pediu desculpas pelo atraso, prometera não mais acontecer. Compenetrado no que estava fazendo, o homem apenas gesticulou como quem diz que está tudo bem. A jovem saiu em disparada buscando compensar o tempo perdido.

O almoço fora servido. Henrique fartou-se, parecia estar sem comer havia um ano. Tomou seu licor, elogiou a ótima refeição e foi até a sacada frontal fumar seu charuto. A empregada nem terminara de almoçar e já estava estendendo as roupas. Naquele dia, embora tivesse chegado atrasada, terminou mais cedo suas tarefas. As calças e camisas eram poucas, e o restante do serviço fora findado antes do almoço. Carmem, com a bolsa na mão, dirigiu-se aos fundos da casa, na esperança de rever a senhora do orquidário. Talvez pudessem conversar um pouco, já que terminara seus afazeres com sobra de tempo. A jovem encostou-se no varal. Permaneceu por ali alguns minutos e nada. Estava cansada, resolvera tomar seu caminho. Encontrava-se no fim da calçada do varal quando, ao olhar para trás, avistou a velha senhora, com uma bengala nas mãos e um riso claro e puro nos lábios pálidos e murchos. Carmem pensou em voltar, mas era tarde. Retribuiu o adeus e continuou caminhando. Ao chegar ao portão parou um instante, voltou-se para a casa com o intuito de ir ao orquidário. Olhou no relógio, fechou o portão e deixou o encontro para uma próxima oportunidade.

O tempo nunca passara tão rápido para Carmem quanto naquele fim de semana que precedia sua ida ao trabalho na casa de Henrique. Eram pouco mais de sete e quarenta. A jovem aguardava na entrada da casa dando tempo ao tempo. Não mais suportava a espera e tocou a campainha. Henrique, com um ótimo semblante, veio abrir o portão. Foram caminhando lado a lado até o interior da casa sem uma palavra pronunciada. Carmem iniciou suas tarefas com o pensamento centrado no orquidário e na quase amiga. Sentia uma imensa vontade de conhecê-la, contar-lhe sobre sua vida, enfim, ter uma colega de trabalho, já que em outros de seus empregos sempre trabalhara só.

O segundo dia de trabalho semanal na casa de Henrique não demorou a chegar. A jovem abriu o portão e entrou, ganhara uma cópia da chave, foi até o local onde o patrão fazia o desjejum, deu bom dia e iniciou a jornada de trabalho. A empregada limpava a cozinha quando Henrique entrou e lhe pediu que fizesse uma limpeza geral no quarto dos fundos, já que este estava fechado há algum tempo. Carmem tomou os utensílios e produtos necessários para a limpeza e dirigiu-se ao quarto. A porta estava trancada. Não tardou muito, Henrique trouxe a chave e o abriu. A jovem assustou-se com as condições do cômodo, parecia nunca ter sido usado. Tudo estava em perfeita ordem. A cama arrumada, os tapetes bem estendidos, as cortinas impecáveis, a cadeira e a escrivaninha em perfeito estado, a cômoda e os porta-retratos em seus devidos lugares... De imediato não entendeu o motivo do pedido do patrão. Foi até a janela e a abriu. Havia no quarto um cheiro de mofo, tinha um ar úmido e frio. Olhava com atenção e interesse, cada canto, cada objeto; mas ateve-se ao quadro na parede atrás da cama, uma pintura a óleo, de perfeição indescritível, parecia ser real.

“A obra fora terminada dois meses antes de mamãe cometer suicídio”, disse Henrique com a respiração pausada, os olhos brilhantes e religiosamente fixos na imagem da mulher que lhe dera uma vida digna, e fizera dele um nobre homem, mesmo tendo ele vindo de um ambiente propenso ao desregramento e marginalidade.

Ao findar da frase, Carmem caíra bruscamente de joelhos chorando em desatino; não entendia o que estava acontecendo. A senhora retratada no quadro era a mesma que lhe acenara do orquidário dias antes, com o mesmo corpo, o mesmo riso claro e puro, mas ali, na pintura, de lábios rosados e vívidos.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 28/02/2008
Código do texto: T879974
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