Quando se rompe um hábito

Detalhista ao extremo e rigoroso em todos os atos. Frio, distante, indiferente e áspero com a família e com os colegas de trabalho. Não possuía amigos, também pudera, não participava de qualquer evento social, fosse ele religioso, cultural ou de entretenimento. Tinha a vida restrita do trabalho para casa e de casa para o trabalho.

Bento era casado e pai de dois filhos. Vivia com a esposa na mesma casa à vinte anos; por longos vinte anos de sofrimento. Não para ele, mas para os filhos e a esposa. Para o chefe da casa a vida era algo supérfluo e, assim sendo tratava os seus do mesmo modo. Era um homem forte, de proporções corporais quase que exageradas e de sorriso inexistente. Portador de muitas manias, carregava consigo uma rotina linear, sem deslizes, com hora para tudo e de ações categoricamente premeditadas. Nas refeições, possuía um de seus piores hábitos. Não iniciava o almoço ou o jantar, suas únicas refeições diárias, sem minuciosamente observar o que se estava servindo. O arroz era posto no prato e virado e revirado, para que tivesse a certeza de que nada além do cereal ali existisse. Com o feijão a revista era mais aprofundada, finalizada somente após todos os grãos serem amassados e reamassados. E os outros alimentos tinham cada um sua peculiaridade de revisão.

A pobre esposa sofria calada com tudo aquilo; sentia às vezes uma repugnância imensurável pelo marido, mas forças não tinha para que o ritual diário fosse de uma vez excluído das cenas “familiares”. Os filhos, dois garotos, assistiam aos atos do pai com um certo ar de medo e respeito e, não obstante, com ódio e reprovação. Na hora das refeições ninguém colocava nada na boca antes da cerimônia doentia de Bento, a qual não terminava antes de sete ou oito minutos no mínimo.

Desde o casamento, Bento não modificara em nada, nem através dos atos, muitos menos pelos sentimentos. Em contrapartida, a mulher acumulava mágoas, desilusões, e colecionava feridas na alma e no coração; enegrecidas e sangrando constantemente. Catarina era uma mulher amável, carinhosa e compreensiva, mas com o passar dos anos já não mais acreditava em uma mudança, por menor que fosse, de Bento. Ela tinha na vida uma única e plena certeza, a de que morreria naquela situação humilhante e de total abandono por aquele que um dia amou. Tal convicção se dava por ser temente a Deus e respeitar o compromisso firmado na igreja diante dos familiares e amigos, do padre e Dele.

Orava todas as noites pedindo coragem, força, uma sorte melhor na vida, que o marido mudasse... Ou de uma vez por todas, que os abandonasse, para que pudessem, ela e os filhos, terem uma feliz sobrevivência, mesmo com as privações que uma família humilde amarga ao longo da vida.

Era feriado, festa do santo padroeiro da cidade. Bento, que sempre levantava-se mais cedo, ficou no quarto até às dez; quando saiu carregava uma mala grande e abarrotada, com pontas de camisa para fora e um casaco verde escuro entre as alças.

-“Vou embora!” Exclamou como se dissesse bom dia.

Catarina, perplexa, quase desmaiou. Sentou-se no braço do velho e puído sofá. Ali permaneceu imóvel observando o marido, que calmamente abria a porta da frente. Com o semblante sereno e gélido fez um gesto com a cabeça para os filhos, fechou a porta calmamente e, como um prisioneiro liberto, abriu um sorriso tímido entre um suspiro preenchedor.

A esposa ainda correu até a frente da casa, não para pedir que ficasse, mas acredita-se para ter certeza de que iria mesmo. Viu somente o vulto - do agora ex-marido - adentrar num taxi. Bento nem sequer olhou para trás. A mulher, num desespero aliviado, dirigiu-se ao quarto na esperança de encontrar a prova cabal de sua libertação. Avistou sobre a cômoda um curtíssimo bilhete que dizia:

“Não tenho, ou nunca tive razões para aqui estar. Os papéis do divórcio chegarão ainda esta semana para assinares e, a pensão dos meninos é uma outra história...”

Bento.

Um largo sorriso surgiu nos lábios de Catarina; remédio para as chagas do coração e acalento puro e alvo para a alma quase por completa enegrecida. Os filhos choraram, mas de alegria.

Serviu o arroz, revirou de um lado para o outro com profunda paciência e provido de um olhar quase clínico. O feijão amassou e reamassou como sempre. A nova mulher, uma de suas amantes, que “trabalhava” em um bordel, observava tudo com repulsa. Há um ano e dez meses morava com Bento e não mais suportava suas manias.

Num domingo, sete de setembro, Alba convidara o “marido” para brindarem dois anos de união. Bento aceitou, era cego de amor por ela, mas como não gostava de bebidas alcóolicas, embriagou-se facilmente. Após alguns goles, sentou-se no sofá completamente tonto observando as distorcidas imagens da televisão. O almoço estava servido, como também o prato de Bento; em seu devido lugar, no centro da mesa e no canto esquerdo da cozinha, de frente para a porta e de costas para a parede com a janela fechada ao lado direito. Havia, porém, no prato de Bento algo não posto à mesa. Alba, já cansada de toda a indiferença e manias do “cônjuge”, encarregou-se de salpicar a refeição do homem com alguns fragmentos imperceptíveis de vidro.

A mulher, com um meio e macabro sorriso chamou o “marido”, que, segurando-se nos móveis sentou na cadeira bruscamente. Tal era seu estado que desta vez nem sequer virou, muito menos amassou a comida como fazia anos a fio.

A partir da quarta ou quinta porção que engolida fora, começou a sentir o gosto amargo do sangue, que em virtude dos pedaços de vidro que retalhavam sua garganta, vertia contínua e vingativamente. O espesso vermelho iniciou o final da jornada da criatura fria, distante, indiferente e áspera.

Durante vinte minutos agonizou até que o socorro chegasse. Alba, após ter pedido ajuda através dos vizinhos, encostou-se na porta e acendeu um cigarro. Com um semblante sereno e despreocupado fumava tranqüilamente e, a cada nuvem do fumo barato que soprava, franzia a testa e balançava a cabeça. Bateu as últimas cinzas sobre o “marido” e sussurrou:

-“Quando um hábito se rompe... as coisas mudam...”

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 28/02/2008
Código do texto: T879965
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