Manhã interrompida

As plantações de arroz pareciam o seguir, o vigiar. Traziam uma paz angustiante, porém serena.

Era sábado. O relógio dourado com pulseira de couro negro se encontrava ao lado. Lançou calmamente o olhar aos ponteiros, que se confundiam em sua visão distorcida do mundo que agora avistava, e que não obstante, o intrigava. A noite fora longa. A estrada um tanto mais.

Eram oito horas e vinte e sete minutos quando ele lançou um outro olhar, agora parcial, nos ponteiros do relógio. Um ruído estranho soou, e a direção do automóvel bruscamente mudou. Seus braços, já cansados da viagem, sentiram um forte peso e seu coração acelerou. Conseguiu, com muito esforço, dominar o carro descontrolado que buscava por toda a extensão da pista, divagando como uma mente em desatino que vislumbra num simples galho de árvore, a poderosa e letal garra da morte.

Frio e temerosa era o suor que de sua testa vertia; com as mãos trêmulas e os lábios pálidos, segurava sem coordenação o volante, respirando desgastada e rapidamente. Um tempo considerável se passou até que o vendedor de produtos de limpeza voltasse ao seu estado normal.

O corpo, como não poderia ser diferente, dava sinais de extremo cansaço. A viagem fora pesada e estafante. Quase dois estados percorridos em três semanas. Elizeu estava nesse negócio desde que se casou. Tinha uma filha de sete anos e uma bela e adorável esposa, chamadas Fátima e Madalena, respectivamente. Era um homem trabalhador, buscava de sol.a sol o sustento e o conforto da família. A esposa e a filha ficavam sós durante todo o tempo das viagens que Eliseu era obrigado a cumprir; e cumpria com devoção e responsabilidade, assim como o dever de pai e de marido.

O vendedor tinha um carro branco, modelo setenta e oito, praticamente novo. Um crucifixo e algumas gravuras de santos ornavam o interior do bem conservado automóvel. Religioso e cultuador da moral e dos bons costumes, Elizeu dos Santos casara aos dezessete anos de idade, e desse dia em diante doava-se de corpo e alma à esposa e família.

Madalena, a esposa, era uma mulher jovem, dedicada aos afazeres domésticos, bonita esteticamente, de longos e negros cabelos, estatura imponente, sorriso desafiador e sensual... porém de estranhos hábitos. Na ausência do marido, buscava... em... e sentia-se feliz. A filha do casal, Fátima, presenciava tudo, com uma serenidade de dar inveja ao mais puro dos santos. O dia a dia das duas era de choro, sorrisos, diálogos intermináveis, juramentos, lamúrias e tudo mais que poderia acontecer em uma casa habitada por uma inocente criança e uma jovem mulher solitária. Tudo era proferido de modo entusiasmado, repleto de dedicação e carregado de veracidade.

Pôs a mão no teto do carro. A plantação de arroz, verdejante nessa época do ano, dava-lhe acenos comprometidos de não mais retribuir seu olhar. O vento de duas horas atrás cessara, a brisa que levemente tocava seus castanhos cabelos, soprava os últimos suspiros daquela manhã (prometendo voltar à tarde) que somente começando estava.

Elizeu desabotou a camisa vagarosamente pensando, sem sombra de dúvidas, no lar e na família. Demoraria ali, a trocar o pneu furado, por mais alguns minutos. Enquanto estava compenetrado naquela indesejável ocupação, uma minúscula pena pouso-lhe nos ombros. Dera-se conta da alva e esvoaçante penugem somente ao findar o trabalho. Sorriu. Apanhou-a com cuidado pela parte inferior e a pôs sobre a mão esquerda, soprando-a com cautelosa suavidade. O pequeno ponto branco lembrava um anjo sobrevoando a bela paisagem verde e azul daquele dia que se formava.

Bateu a poeira dos joelhos, olhou um instante ao redor da deserta cena e entrou no carro, ligando-o rapidamente. Tinha ainda um caminho de uma hora a ser percorrido, e para o tempo passar, cantarolava um hino religioso que aprendera com sua avó...

“O povo de Deus

no deserto andava,

e na sua frente

alguém caminhava...

também sou teu povo Senhor,

e estou nessa estrada,

somente a Tua graça

me basta e mais nada...

O vendedor parou de cantar, desafinado e sem ritmo, tentou acalentar sua saudade com assovios agudos e renitentes.

As casas começavam a aparecer, mesclando-se a pequenas plantações e pastagens com algumas cabeças de gado. Elizeu trazia nos olhos uma felicidade radiante, e à medida que se aproximava de sua casa, maior era o brilho dos seus olhos, e maior também era a intensidade do bater de seu coração.

Fez o sinal da cruz ao passar em frente à Igreja Matriz. No jardim, que se encontrava ao lado da casa paroquial, crianças brincavam, sorriam e gritavam. Parou em cruzamento. Uma chuva fina e inocente iniciara. Alguns carros lentamente acompanhavam um translado até ao cemitério, levando consigo, lágrimas, perda e sofrimento. Elizeu acionou os limpadores de vidro, já que a singela chuva descera como um véu sobre o pára-brisa. De um lado para o outro os limpadores faziam seu trabalho com o acompanhamento da alva e minúscula, e agora não mais esvoaçante, pena. Um ônibus fora o último veículo da fila que acompanhava o automóvel da funerária.

Após o fim do translado, Elizeu tomou seu caminho. Ao entrar na vermelha e poeirenta estrada, que dava acesso a sua casa, sentiu uma dor no peito, fazendo-o parar o carro e buscar o controle da respiração. Estava próximo de casa. Ao longe avistou a filha. Estava com um vestido rosa, sapatos braços ou bege claro e uma cintilante fita no cabelo. A dor aos poucos foi o abandonando. Fátima, que brincava com bolas de sabão, voltou-se para trás e, vendo o pai, acenou e disparou ao encontro dele. O copo, com o líquido que produzia as bolhas esvaziava-se. Elizeu, já recuperado da súbita dor, saiu do carro com os braços abertos e o coração aliviado. Ouviu ao seu lado esquerdo um barulho pesado que lhe trouxe ao nariz e às vistas uma enorme nuvem de poeira, obscurecendo sua visão e obstruindo o respirar. Fátima corria no centro da estrada, um caminhão aproximava-se em uma transversal. O vendedor tentava enxergar, por entre o avermelhado fantasma que o veículo produzira, uma nítida imagem da filha.

Amenina gritava pelo pai no momento em que os dois; o caminhão e a menina encontraram-se na encruzilhada. O motorista tentou desviar da pequena garota, girando bruscamente o volante do veículo, mas em meio aquela nuvem de poeira, chocou-se, inevitavelmente com Fátima, lançando-a à margem da estrada. O copo plástico, agora completamente vazio, por causa do impacto, produzira sua última bolha de sabão, a qual morreu na face de Elizeu.

Madalena vestiu-se, pela janela uma brisa adentrava fria e cortante, enquanto uma sombra desaparecia. Arrumou os cabelos, maquiou-se e se pôs a espera do marido, que de joelhos ao lado do corpo da filha, que quase imperceptível, emitia derradeiras manifestações de vida, gotejando o vermelho de sangue sobre a vermelha terra, concretizando assim, o fim de uma vida, da manhã de uma vida. Encarcerado nesse indescritível padecer, inconscientemente o pai cantarolava...

“...também sou teu povo Senhor,

e estou nessa estrada,

somente a Tua graça

me basta e mais nada...”

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 28/02/2008
Código do texto: T879959
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