AQUELES QUE DEVEM MORRER - 5 primeiras cenas

PARTE I

Esta história fala de uma geração perdida. Mas, o que digo, perdida não destroçada. É a história daqueles que um dia tiveram o azar de ter dezoito anos justo nas culminâncias do golpe de estado de 1964 que imergiu o Brasil num período de trevas. Não, não foram exatamente trevas, porque para muita gente aqueles foram dias de glória, das luzes de bailes e da pompa de uniformes de gala. Esses, assim como os outros já devem, em sua maioria, ter falecido, e suas almas estão, provavelmente, exultantes pela boa vida que seus corpos desfrutaram. Mas, o que dizer dos outros, os que se ferraram na vida? Falo de pessoas comuns, sem grandes dotes artísticos ou científicos, pessoas que ficaram chafurdando no lodo da mediocridade, ou partiram para a luta desalmada, ou fugiram do país para se converterem em faxineiros na Europa.

Nesta primeira parte, os personagens serão mostrados numa espécie de ordem cronológica, alterada a partir de um esboço onde cada um deles era apresentado na forma de um longo relatório que mais parecia um inquérito policial. Não, não queremos restabelecer verdades pois estas não existem de forma absoluta. Queremos, apenas mostrar a que ponto se esgotam vidas nessa terra de meu Deus. Mas mesmo assim, quem pode afirmar que uma vida, qualquer eu tenha sido ela, foi uma vida perdida? E que para o mundo, existem tantas vidas possíveis que algumas delas podem muito bem se perder sem que grande prejuízo advenha disso.

Cena 1.

1999, Favela do Cantagalo, próximo de Ipanema. É madrugada. O autor hesita.

As coisas para mim sempre foram muito difíceis. Afinal, não sou um predestinado. Nenhum milagre, nenhum prodígio, nenhum ser extra-terreno jamais povoou os meus dias prosaicos. Como Buda muitos anos tive que ficar imóvel sob uma figueira imaginária. Como Bodidarma, tive que olhar um muro branco por nove anos. Nenhum ser iluminado apareceu para me facilitar a caminhada em tão pedregoso caminho.

Como o herói de Rosa, o Guimarães não o Noel, eu afirmo: o que existe é o homem humano. O resto é nada, barulho que se faz por puro divertimento.

O mundo da crueldade é que é o mundo humano. Para os muitos milhões de almas viventes ancoradas nessa terra, a vida nada mais é do que labuta. No entanto, elas anseiam por espiritualidade. Por mais brutos que sejam os dias, qual o ser que não olha para as mãos calejadas e não sonha com um bom banho, com ungüentos perfumados, odaliscas requebrando com véus de gaze esvoaçantes, enquanto se toma uma água de coco? Isso é o máximo de espiritualidade que consigo conceber no momento. Estar-se de fato nutrido de todos os bons e bens. E, no entanto, a maioria de nós, após olhar as mãos calejadas, vai dormir é de barriga vazia, com o cheiro do suor impregnando os lençóis. Pernilongos são capazes de infernizar a nossa noite e de deixar manchas de sangue nas camas. Calor. Zumbido. Uma lâmpada nua ilumina os tijolos do barraco inacabado.

Mas isso é muito sofrimento. E dizer que eu fui feliz nessa favela. Porque era a única possibilidade. Ser feliz ou nada. Aonde quer que estejas.

Enquanto trabalhamos muitos desfrutam dos bens terrenos e celestes. Enquanto fazemos o trabalho sujo para as madames. Matando o gado. Estripando. Limpando a sua carne para que os hambúrgueres possam ser comidos limpinhos, vermelhos e bonitos. Eu por mim prefiro angu com couve e feijão, que é macio e pode ser comido com as gengivas nuas. Mas hambúrguer também é comida de desdentados. Macio, a carne e o pão, não precisa nem mastigar.

Por mais que o tempo passe, às vezes pensamos em João. Ele que andou por mundos e fundos nesse Brasil enorme e atravessou muitas décadas mantendo a sua velha carcaça preservada; agora é vizinho nosso na favela. Muitos não conseguiram, muitos se apagaram. Vive agora casado, ou amigado, já com barbas e cabelos brancos, arrumou uma penca de filhos que tem prazer em criar. Se vira de biscates como todo mundo. Tanto pode estar limpando uma fossa, como cortando grama, ou carregando entulho de obra. Gosta de pintar fachadas e cartazes, ou cantar velhos sucessos com o seu violão sem brilho. João parece não ter mais medo de viver a vida. Está bem, tranqüilo, levando os dias do amanhecer até o anoitecer. Vez por outra toma uns porres e é encontrado no inicio da escadaria, sem forças para subir, com os cachorros em volta como se fossem sentinelas.

Esse é o João que já foi de tudo um pouco, e que se não encontrou a tão sonhada paz, aprendeu que a vida é feita de dias. E que cada dia deve valer por si. Como se toma um copo d’água, gole por gole.

Cena 2.

1967. Num apartamento comunitário em Ipanema. Rua Barão da Torre. Aldo dá instruções a João.

- Mantenha a boca fechada, João - Aldo havia refeito a lista das coisas necessárias pelo menos três vezes. Checava cada item, separando os objetos por classes. Não colocava no mesmo grupo garrafas de aguardente e mapas, roupas e pacotes de macarrão. Ir à guerra, mesmo que fosse uma guerrinha pessoal, era parecido com uma pescaria. Botas, capas de chuva, anzóis, linhas, canivetes, lanternas.

Com a boca calada, João não parava de sonhar com uma vida boa e justa. Era o seu defeito, se realmente se pudesse atribuir defeitos às pessoas. João era notavelmente um sonhador, ainda que não conseguisse traduzir em palavras um décimo de seus sonhos. Idílios sobre a terra boa e pura, que produzia aos borbotões coisas boas de se comer e beber. No entanto, os cachos de bananas secavam e se tornavam pretos nos pés, e Deus sabe o trabalho que dá para pegá-los. As mangas apodreciam no chão. Apenas os sabiás, as formigas, as moscas das frutas faziam o seu repasto. E como essas, muitas e muitas safras se perdiam para sempre sem que ninguém aproveitasse. Na dureza dos dias sucessivos, alguém tinha que preparar a comida, limpar a casa, lavar a roupa. Manter as coisas funcionando do jeito que as pessoas gostam. Não seria João a fazê-lo.

Cena 3.

1999. O autor revê suas motivações para continuar o relato.

Encontros e desencontros. Não é necessário ordem ou lógica; um caminho não é um caminho se não pretendemos ir a qualquer parte. É apenas um lugar para se estar. Para que não pareçamos uns idiotas. Para que achem que sabemos exatamente o que estamos fazendo. Que o dom da esperteza faz parte dos nossos dias. E que tudo dará certo no final das contas.

Que triste sina é esta que não permite que os compatriotas vivam, que tenham que procurar algures uma solução para os seus graves problemas? Em toda história nunca houve uma revolução bem sucedida. Apenas brigas, barulho, tortura, assassinatos, execuções, degolas, degredo e dor. O nosso povo tido como cordial é na verdade profundamente ordeiro. Estou cansado de ouvir essas baboseiras. Uma boa e justa guerra civil, como a americana, poderia varrer do mapa os nossos tradicionais exploradores. Será? Os exploradores é que nascem aos borbotões. Eles são tão eficientes lá no grande irmão do norte, que os seus exploradores viraram os exploradores dos nossos exploradores. Coisa triste é ter que ouvir os nossos lideres, publicamente, justificarem isso. E ter que votar neles. Mas dessa vez vai ser diferente. Estavamos começando a luta final. Que vai ferir o império no coração.

Cena 4. 1967. Como peixes fora dágua

Aldo tinha tudo pronto. Embrulhos, trouxas, mochilas, panelinhas que se encaixam, abridores de latas, muitos quilos de tralhas para carregarem nas costas. Não tinham a menor idéia de como chegar até a Bolívia. Ir até São Paulo. Viajar pelo interior, o oeste paulista, Mato Grosso, chegar à fronteira. Atravessar um rio. Daí para frente mistério absoluto.

Numa cidade do interior. Como peixes fora dagua. Parecíamos alpinistas, com toucas de lã coloridas e óculos escuros. O povo nos olhava na praça. O dinheiro acabando. Os policiais curiosos. Alguém queria acampar no gramado. Como se a revolução tivesse começado ali. Mas o melhor era procurar um hotel ou pensão barata.

Na fazenda. Trabalhar com a enxada entre as linhas de laranjas. Folhas e espinhos esbarrando na carne. Não é muito diferente de andar no mato carregando um fuzil. Tudo isso em troca de pouco dinheiro. Fazer uma poesia sobre um belo jardim é muito mais fácil do que cuidar de um jardim verdadeiro. E talvez mais compensador.

Cena 5. 1999. O autor duvida de sua determinação de escrever. Não seria isso um sintoma de depressão? Um simples remédio não poderia resolver as suas angústias?

São três e meia da manhã. Essa história de escrever sobre João me deixou muito excitado. Escrever das quatro até as sete da manhã, todos os dias, como se fosse uma prática religiosa ou uma maldição. Retomar uma velha pretensão. Penso que foi bom não ter começado à sério muito jovem. Ia fazer muita bobagem. Agora vejo que não sei e nunca soube como contar uma história, se é que existe alguma. Minhas histórias acabam virando violentos discursos libertários, panfletos. Comparo diversos autores para ver os truques da composição. Não há truque. Os personagens aparecem, a ação vai acontecendo. O verdadeiro criador é o leitor, que de alguma forma monta a história em sua cabeça. Bem diferente do que sempre fiz. De cara conto em duas linhas toda a historia: olha, tem um cara muito doido que está à procura de um quilombo. O idiota não consegue ganhar a vida como uma pessoa normal, e precisa do apoio de toda uma tribo para viver. Pronto, agora acabou a história, não preciso escrever mais nada... O verdadeiro autor vai soltando a história aos poucos, sangrando o animal lentamente, para não matá-lo rápido. Esse é o truque. Prende a atenção do leitor, deixa-o curioso. Uma palavra aqui, outra ali e todo um cenário é montado na cabeça. Então vamos procurar a ação, se é que existe alguma. O que existe é a história de toda uma geração, sufocada pela ditadura. De expectativas e sonhos irrealizados. De gente como João, um desorientado que não sabia o que fazer da vida.