Liberdade

Fazia-se a segunda tarde de um ano recém-nascido. A chuva, muito comum nessa época, mesmo com o firmamento claro apesar das nuvens, repetia histórias anteriores. Na sala semi iluminada, onde escrevia aos prantos, lançava os olhos sôfregos à inocente vidraça que, assim como ele, deixava um liquido transparente mapear sua superfície. Quanto mais caia a chuva, menos ele escrevia seu intento. Pássaros, com almas e asas inundadas, buscavam após um trovão, de proporções poucas vezes antes ouvidas, o abrigo para seus frágeis corpos. O céu de súbito enegreceu, e a tarde, que ao início era de um intenso brilho agradável, tornara-se pálida e sombria, como a face de alguém acometida da mais profunda tristeza, que possui os orifícios do coração estreitados, fazendo com que o sangue corra mais lentamente nas veias, tornando-o frio e espesso.

Rafael abandonara a sala. Dirigiu-se ao quarto apoiando o espírito nas paredes. A janela encontrava-se aberta; o tapete e a poltrona estavam totalmente molhados, e próximo ao guarda-roupa, trêmulo e quase falecido, um pequeno pássaro parecia implorar abrigo. O rapaz, mesmo após todo o pranto derramado e a angústia desesperada, que o assolava desde os fogos de artifício, que não somente se dissiparam no céu, mas também serviram como sonoplastia de uma rejeição, abriu um sorriso ao pobre refugiado da tempestade.

O pássaro, fraco e debilitado, por toda a busca que fizera, não moveu um músculo sequer, e Rafael, com calma e serenidade tomou-o em suas mãos.

O rapaz, agora mais tranqüilo, levou a ave até a cozinha enxugando-o durante o trajeto, com as pontas da camisa. Deu-lhe alguns grãos de arroz picado e um pouco d’água, que gotejava sobre o piso branco.Retornou ao quarto com o pequeno animal acolhido nas duas mãos.

A chuva cessara, e o sol não se tem lembrança de ter brilhado tanto quanto naquele exato momento. Rafael foi até a janela e, erguendo o novo amigo, abriu as mãos sussurrando que voasse. Ele o respeitou, deu algumas voltas à frente do rapaz, e como se estivesse agradecendo, emitiu um estridente canto, curto é verdade, mas serviu para fazer o coração de Rafael, ao menos naquele instante, esquecer de cumprir a missão que se dispusera.

Na tarde seguinte, enquanto relia as cartas enviadas pela ex-namorada, não entendendo a rejeição de dias atrás, ouviu um canto contínuo e de uma melodia que lhe alegrava a alma. Correu até a janela, era ele, o pequeno amigo que fazia seu concerto sob o tronco de uma velha árvore no quintal da casa de Rafael. A angústia novamente findara, e ao sabor de uma leve brisa, escutava com devoção o canto que lhe imprimia liberdade.

E Liberdade fora o nome dado por Rafael ao único amigo que possuía.

A cada dia de deterioração sentimental, a única alegria da vida do desolado rapaz, que lia e relia as cartas da ex-namorada, era o encanto das tardes quentes a escutar Liberdade, acalentando assim, um pouco da tristeza, pois, a alegria das tardes somente amenizava o sofrimento das manhãs e das noites, em que ele enterrava-se na leitura das cartas, que injetavam na alma um padecer que ensaiava a eternidade, e mumificavam o corpo para uma inércia eterna.

A mistura de angústia e alegria que preenchia os dias de Rafael estendeu-se por dois longos meses.

Rompera-as mais um dia. Rafael, como de costume, sepultado no quarto, ouvira o apito do carteiro. Num primeiro momento não dera importância, mas algo tocou sua mente, ordenando que fosse apanhar a correspondência. Um forte vento soprava, fazendo as portas e janelas baterem como se estivessem esbravejando, as árvores tinham seus galhos balançados com raiva, enquanto a poeira adentrava nas casas e nos olhos dos descuidados.

Rafael abriu a caixa de correspondência e apanhou a única que ali se encontrava. O vento se fazia mais intenso, as roupas nos varais estalavam, compondo uma sinfonia em consonância com as cigarras que, a cada chicotada do vento, mais estridente construíam seu canto. Um caos de sons variados irritava os ouvidos trazendo uma espécie de pavor harmonioso, que mesclado ao céu que se tornara negro, encarcerava a todos em sues lares.

Sob a luz de uma vela, que dançava ao domínio do vento que se embrenhava pelas frestas, Rafael lia a carta destinada a ele:

Rafael...

Venho te pedir desculpas por tudo que lhe falei outro dia. Sei que mereces toda a felicidade do mundo e um pouco mais. Assim, quero que reconsidere minhas palavras e meus erros, pois sei que podemos ser felizes como um dia acredito que fomos. Não posso ainda dizer que te amo, mas posso, com toda a convicção dizer que tenho um enorme afeto por ti, e que um dia te amarei como tu me amas, e nesse dia encontraremos a tão esperada felicidade... Perdão, Gabriela.

PS: Eu e ***** não temos mais nada. Beijos...

Rafael não esperou nem o vento dar uma trégua, em desatino foi a casa de Gabriela dar-lhe o perdão.

A moça encontrava-se em casa. O rapaz, ofegante, chamou por vezes, ininterruptas, mas não houve retorno. Aproximadamente cinco minutos após ter chegado ao portão da casa da ex-namorada, avistou-a, linda e sorridente como antes. Ela se aproximou estendendo a mão fazendo sinal para que ele entrasse. Rafael, atônito, ateve-se um instante. Correu os olhos nela, sorrindo tão intensamente quanto a angústia e o sofrimento que o corroera nos últimos dois meses.

O vento cessou, o sol apareceu e a eternidade daquele momento era gravada por tudo que os rodeava.

Algum tempo depois Rafael voltou para casa. Lá chegando dirigiu-se diretamente ao quarto, e posteriormente à janela; esperava ver Liberdade e lhe contar as boas novas. O pequeno pássaro estava lá, sob o tronco da velha árvore. Inerte e caído, tinha outras companhias, algumas formigas que subtraíam sua restrita carne, deixando somente suas leves penas que, não muito além, seriam transladadas pelo vento fazendo assim seu último vôo.

Aquele final de tarde para Rafael assim se resumira: beijos e caricias, abraços e palavras doces, perdões e desculpas, e Liberdade que não mais cantaria.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 26/02/2008
Código do texto: T876625
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