Dois horizontes

O sol timidamente escondia-se avermelhando o crepúsculo. Mais um dia de trabalho havia terminado. Joana subia as escadas quase rastejando, o cansaço após a labuta transformava aquela criatura em apenas mais um número de apartamento. A cama localizada na sala, e que servia de sofá, era seu túmulo até as nove ou dez horas da noite, quando se levantava para fazer um rápido lanche e descansar uns minutos antes de compenetrar-se em suas leituras noturnas. Lia autores do clássico ao moderno. Identificava-se com alguns, talvez por uma de suas características mais relevantes, inerentes ao seu caráter e alma. Joana via, ouvia e respirava o mundo “das coisas” e decisões apenas como se existissem dois caminhos, duas saídas.

Os autores de suas leituras possuíam a dualidade, tinham em seus escritos as lutas entre o bem e o mal, o bom e o ruim, a luz e as trevas, o amor e o ódio, enfim, davam à Joana uma espécie de segurança mascarada, pois seus poetas preferidos também eram duais como ela. Mas a ingenuidade da moça, ou a sua incapacidade de interpretação a impossibilitavam de compreender que as poesias e romances dos seus preferidos autores iam além dos dois caminhos a seguir, sobrepujando os limites do vão conhecimento de Joana.

Mesmo com esse equívoco, a moça era, de certa forma, feliz com sua visão de mundo. Levaria uma vida normal, não fosse essa sua particularidade. Ia à igreja todas as segundas. Adorava a Cristo e tinha um pavor descomunal do simples proferir de alguém a palavra diabo. O céu, para ela, não passava de um ambiente totalmente claro, com móveis brancos, anjos sobrevoando uma imensidão de paz, almas felizes com corpos translúcidos e roupas de um azul que evocava a sublimação. Uma imagem desfigurada e ardente, rios flamejantes sobre pontes construídas de crânios e demônios alados que, incessantes torturavam espectros disformes e agonizantes, formavam a morada do rei das trevas e do sofrimento eterno.

Tinha pai e mãe, mas era como se não tivesse, moravam em uma outra cidade e em outro estado, fazendo-se assim, uma relação quase inexistente. No tempo em que era estudante, tinha dois sonhos: formar-se e cuidar dos negócios do pai; ou abandonar os estudos na pacata cidade e buscar a sorte em outro lugar. Escolheu este, não deixou mágoas nem rancores, ou melhor, nada deixou.

Há um bom tempo estava morando sozinha, não tinha luxo mas também não passava por dificuldades. Era uma moça bonita, educada e com emprego fixo numa loja de livros raros e usados. Despertava, às vezes, o interesse de um ou outro rapaz. Não lhes dava muita atenção, era recatada e introspectiva, parecia manter a chave do coração em casa, e bem guardada por sinal. Diziam estar esperando dois príncipes encantados que lhe amassem, para somente assim poder escolher um deles.

Ano após ano, Joana permanecia tal e qual, dividindo e esperando sempre duas opções. Suas “solitudes”; a social, que englobava o trabalho, os vizinhos...e a familiar, a qual resumia-se à distância dos pais e o apartamento, onde nem sequer via-se uma única foto, nem mesmo dela. Tal situação começava a sufocá-la, esmagando alma e coração, corpo e mente; liberando alternadamente momentos de guerra e paz, alívio e angústia, amor e ódio, o um e o dois.

Num domingo nublado, após o almoço, Joana resolvera espantar as “duas solitudes”. Vestiu-se e foi ao parque da cidade, estava radiante com um novo vestido. O brilho que dela emanava unia-se ao azul do céu e o frescor da brisa, que levemente soprava, beijando as árvores e os cabelos negros e longos de Joana, parecendo a escura e romântica noite de um inverno inacabável. Nunca estivera tão bela. Sentou-se ao pé de um imponente flamboiã, despertando curiosidade nos freqüentadores mais assíduos do parque, que se perguntavam de onde teria vindo tão formosa mulher e se estaria a espera de alguém, ou simplesmente pousara ali para apreciar a beleza do local?

As perguntas permaneceram sem respostas por um longo tempo. A tarde ia caindo vagarosamente, e o dedo de Deus suspendia o sol fazendo com que a natureza aproveitasse um pouco mais aquele Divino entardecer.

Joana levantou-se calmamente sacudindo com leveza o vestido repleto de pequenas folhas já secas pelo tempo. Ao longe, dois rapazes conversavam, Joana os avistou e permaneceu um pouco mais a observar o fim de tarde que se fazia no horizonte, retratando a magnitude da criação. Inerte nesta sônica hipnose, Joana não se dera conta dos gêmeos que a fitavam de cima a baixo. A moça ao virar-se, assustou-se e logo sorriu. Uma luz fraca já dominava o parque, abrindo caminho à plenitude da escuridão quando os três se despediram.

Já era noite. Joana chegou ao apartamento em estado de êxtase. No caminho do parque até ao sentar-se na cama, a imagem do dois jovens confundiam-se nos pensamentos da moça. Estava enfim apaixonada. Os gêmeos, filhos de um lojista da cidade, eram de origem estrangeira, bons rapazes, estudados e, confessaram estar observando Joana há anos, mas como tiveram de sair da cidade para estudos, podendo retornar e formar família após serem bacharelados, somente naquele dia conseguiram revelar seu amor à moça.

Leba era extrovertido, brincalhão e vivia presenteando Joana. Miac era contido, sereno e não menos agradável que o irmão, e também não menos apaixonado.

Joana adorava os dois, cada um com seu jeito, cada um com sua forma de devoção e cada um com seu modo e intensidade de amá-la.

Com o passar do tempo, Joana estava sendo pressionada a escolher um dos dois. Pedira então, duas semanas para escolher aquele que seria seu marido. O tempo voou, e o momento da revelação se dera; Joana escolhera Miac. Saíram os dois do apartamento, um tinha o semblante da derrota; o outro possuía corpo e alma preenchidos de felicidade.

O casamento fora marcado. Os preparativos andavam rapidamente e os noivos espalhavam alegria e entusiasmo contagiando a todos, exceto Leba, que após o dia da escolha mudara completamente. Não mais sorria e perdera todo o bom humor. O ar extrovertido e o brilho da felicidade, que lhe era inerente, dissipou-se o tornando calado e pensativo.

O dia do matrimônio enfim chegara. Os pais de Joana já estavam na cidade, orgulhosos com o rumo que a filha dera à vida. Na casa dos pais dos gêmeos, a agitação era constante. Risos daqui, gritos dali, entusiasmo e a sensação de meio dever cumprido, enchia o pai de Miac, que encaminhara um dos filhos com a certeza da meta alcançada, faltando-lhe apenas iluminar em parceria com Deus, o caminho de Leba.

Joana aguardava num dos cômodos da espaçosa casa do noivo, a chamada para descer e tomar a limusine que a levaria até a igreja. Ouviu um leve bater na porta. Seria o anúncio para que descesse. Não o era. Espantou-se ao ver o futuro cunhado em “roupas de casa”, não o traje a rigor para a cerimônia. Leba tinha um tom escarlate nos olhos, os lábios pálidos e trêmulos, uma das mãos no bolso e a feição dos demônios alados da concepção de inferno que tinha Joana. A moça sentiu no peito um peso prensar-lhe e um vazio lhe gelar a alma. Olhando fixamente nos olhos de Leba, ela não percebeu o rapaz sacar do bolso uma arma, que, após um breve contemplar de sua beleza jovial e esperançosa, disparou dois tiros contra sua cabeça, inundando o puro e inocente branco do vestido, com o esvaziar intenso e rubro do sangue... daquela que escolhera um homem para a vida...e o outro para a morte.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 26/02/2008
Código do texto: T876615
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