Cartas sem retorno

Vinda do interior, moça simples e de rígida educação. Tinha na mala três mudas de roupa, no coração uma esperança e na alma dois propósitos. A cidade grande era para ela um sonho concretizado, uma fantasia de infância que a partir do momento que descera do ônibus havia se realizado. Os pais, humildes agricultores de poucas posses e muitas privações; queriam para a única filha, uma vida melhor do que a que tiveram. Nadia viera tentar a sorte longe de toda a calmaria e estagnação de sua cidade natal, buscando, primeiramente um trabalho, depois um lugar para acomodar-se, não precisando da ajuda e boa vontade de alguns parentes.

O início é sempre difícil. Dormia três horas por dia, trabalhava em dois lugares e ainda possuía uma esperança. A terra parecia girar mais rápido a cada dia.

Três meses e duas semanas se passaram. Enfim, uma carta dos pais. Nadia leu, releu e leu novamente. A saudade apertava o peito, mas o desejo de ver e ter os sonhos realizados, ultrapassava os limites da distância e qualquer vontade de retornar ao verdadeiro lar, junto aos pais. Não mais morava com parentes, já havia alugado um pequeno apartamento; pequeno mesmo, mas a necessidade a obrigava a todo o tipo de restrição. Orava todas as noites, pedia paz, saúde e o alcançar de seus dois propósitos. Tornara-se então, obstinada pelo trabalho, pensava o dia todo e todo o dia em trabalhar e trabalhar; não era de um erro total, mas tamanha obsessão estava enfraquecendo corpo e alma, assim, por água a baixo iriam seus propósitos.

Mas não negamos, “Ele escreve certo por linhas tortas” e, foi através dessa obsessão que uma de suas metas, a mais difícil talvez, iniciara seu trajeto. O propósito da alma de número um chamava-se agora Augusto; jovem, empresário bem sucedido e de belos traços. Tais qualidades não foram o motivo do amor de Nadia por ele, pelo contrário, ele apaixonou-se por ela.

Eram inseparáveis. Ele a buscava no trabalho, que agora era somente um; saiam para jantar quase todas as noites e almoçavam sempre no mesmo restaurante. Não havia brigas, entendiam-se invejavelmente, havia reciprocidade e, além de tudo, um amor puro e sem cobranças.

Nadia ingressara na faculdade. Augusto nada gostou... Principiou-se então, o segundo propósito da moça, mas infelizmente, surgiu a segunda face do agora noivo. Os ciúmes de Augusto eram desmedidos e sem motivos, estavam longe de qualquer prisma de compreensão. Seguia a noiva do trabalho à casa. Seguia-a também do trabalho à universidade e, não diferente, da universidade à casa. O relacionamento estava por um fio.

A moça não respondera carta alguma da cidade natal. Vivia sob remédios prescritos, cautelosa com tudo e principalmente com todos.

Há onze meses encontrava-se longe dos pais. Refletia muito. Valeria todo o sacrifício para alcançar seus propósitos? Não, acreditava que não, ao menos agora. Resolvera então terminar o relacionamento com Augusto. Faltava um mês para o casamento. Que ele a amava era algo imprescindível; que ela o amava, também. Pensou ser necessário um susto, para que assim o noivo voltasse a ser o que fora no início do namoro. Chegando do trabalho a noite foi logo ao banho, fez um rápido lanche, descansou meia hora e iniciou uma breve carta:

Doze de abril de 1980.

Augusto...

Tenho pensado muito em nós; sei da minha e da tua condição, e sei também o que sentes e o que sinto, mas, sinceramente não foi o que vislumbrei em meus sonhos; não foi o que acreditei em meus pensamentos... Assim sendo, obrigo-me a dizer-te que termino neste momento nosso relacionamento, esperando, é claro, que me entendas. Mudaste muito e não és mais o Augusto por quem me apaixonei. Encontro, em mim a sabedoria que...

A carta seguiu nesses termos até o findar.

No dia seguinte a secretária de Augusto trouxe a correspondência. Como de costume, o rapaz foi averiguá-la após o café. Não fazia a menor idéia do conteúdo da carta, apenas sorriu acreditando ser um carinho da noiva. Abriu, leu, e a amassou. Com palavras ásperas e rápidas deixou tarefas e o recado à secretária de que ia para casa e que ninguém tinha conhecimento de seu paradeiro. Nadia, temendo uma reação desequilibrada do noivo resolveu enviar outra carta, só que em termos inversos à anterior.

Vinte de abril de 1980.

Augusto... peço-te perdão,

Escrevi o que escrevi por puro “não pensar”. Reconheço que tomei uma decisão precipitada, venho agora lhe pedir desculpas, mas também pedir um certo entendimento de sua parte. Amo-te, e certamente também me amas. Respirarei aliviada quando ouvir novamente tua voz, sentir teu perfume, apreciar teu sorriso e poder dar-te tudo isso e, assim, voltarmos a viver na paz de nosso amor.

Essa foi um tanto mais curta, talvez nem se considere uma carta, talvez um bilhete, mas com certeza, repleta de termos carregados de sentimento e que, acabariam por fazer com que o destinatário voltasse atrás de sua decisão de flagelo e encarceramento.

Dessa vez o endereço não fora à empresa, e sim o apartamento de Augusto, tendo em vista que a outra permaneceu sem resposta.

No edifício onde morava o noivo, as correspondências de alguns moradores eram levadas até suas portas e postas por debaixo. As de Augusto, sempre entregues em mãos quando este estava em casa, desta vez foi pela porta, tocou seus pés e imóvel ele permaneceu...

Nadia não trabalhava mais direito. Seu tempo vago era tomado pelos estudos, e por este motivo não sentia o tempo passar tão rapidamente. Oito dias, desde a última carta; teria sido muito dura na primeira e pouco amável na segunda? Com a caneta em punho e o papel umedecido pelo pranto escreveu:

Vinte e nove de abril de 1980.

Augusto, amor...

Não mais suporto viver longe de teus braços, de teus carinhos e...até mesmo de teus ciúmes. Teu amor era o que me fazia viver e ter forças, sem este amor prefiro voltar a minha cidade e dar continuidade à vida pacata e vazia que levava. Peço-lhe, então, que ao menos responda as cartas minhas ou procure-me para conversarmos. Não mais consigo sem você...

O restante é tão pessoal que se torna preferível não transcrever. A correspondência voltou a chegar no edifício e subir até o andar de Augusto. Novamente foi entregue pelo vão da porta. A carta encontrou outra vez os pés de Augusto, que inerte permaneceu.

Desse modo e nessa freqüência continuaram as cartas. Chegara o dia em que se daria o casamento. Nadia, impaciente e prestes à loucura, saiu a procura do noivo. Foi à empresa, à casa dos pais de Augusto, não obtendo êxito. Empresa fechada, e os pais não se encontravam. Foi ao apartamento do noivo. Subiu, bateu...bateu...bateu e nada. Retornou à portaria e soube que desde o dia treze Augusto não mais fora visto.

Pediu ajuda para que se arrombasse a porta, os funcionários do edifício negaram. Subiu novamente e olhou pelo vão em que se punham as cartas. O desespero tomou conta da moça. Não pensou muito, chamou a polícia. Arrombaram a porta e encontraram o corpo de Augusto. Insuportável era o odor, impossível de se olhar muito tempo. Estava banhado em sangue. Vermes e moscas faziam parte do ambiente, impregnado pelo ar pútrido e a atmosfera de arrependimento que se formara nos olhos de Nadia. Junto aos pés do morto, as cartas sem retorno...

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 25/02/2008
Código do texto: T874871
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