Ampulheta quebrada

O ar estava impregnado com o adocicado aroma das flores e o ardente odor das velas a queimar. Uma atmosfera, dividida, causava espanto nos desavisados e desconhecidos. A serenidade e a tristeza estavam imóveis de um lado; a completa indiferença unida com a inquietante curiosidade preenchia o espaço restante do pequeno salão atrás da igreja.

Sentia-se cansado, havia estado imóvel ao lado do caixão a quase cinco horas e meia. Os olhos estavam secos, os lábios, mais vermelhos que o habitual, tinham marcas de pequenos cortes causados pelos dentes. Beijou a testa da avó e dirigiu-se para a escadaria frontal da capela de Nossa Senhora, de onde avistava a velha casa de madeira sem pintura, com um humilde jardim que precedia a porta lateral apodrecida pelo tempo. As lembranças lhe atormentavam, tantos as boas quanto as ruins. Apertou fortemente o amuleto que há tempos trazia consigo, ganhara da avó quando completou quatorze anos, por este motivo estava repleto de nós, e quase não mais cabia no pescoço. Enquanto mexia os pés alternadamente, mordia os lábios e segurava as lágrimas. Fitou inerte a cerca parcialmente destruída e divagou.

Um garoto corria aos prantos ao longo da rua encharcada pela chuva que caíra durante a noite. Era um menino claro, de inocentes cabelos cacheados e louros que contrastavam com os olhos de um verde hipnótico. Gritava desesperado em frente da velha casa. Parou ofegante no centro do jardim; soluçava com intermitência a medida que sussurrava a fatídica notícia da morte de sua mãe. Permaneceu ali até que viesse ao seu encontro o tio, que já havia trazido ao conhecimento de todos o súbito falecimento.

Fora acolhido com carinho e atenção. Aos sete anos já havia perdido o pai e no momento a mãe; o chão sumira diante de seus pés, estava em constante queda num abismo sem fim. Tudo na curta vida parecia não terminar, ou adquiria a capacidade de multiplicação. Os dias tinham quarenta e oito horas; as horas superavam cento e vinte minutos; os minutos ultrapassavam duzentos e quarenta segundos e os segundos...

O caminho até a escola, que não passava de quinhentos metros, esticava-se até mil.

Dois anos após a morte da mãe, encontrou na avó o acalento de sua alma e o remédio para suas feridas. Aprendia na escola o suficiente para ser aprovado, e com a avó, o necessário e imprescindível para se tornar um homem. Conduzia a vida de forma regrada e com fé, aprendidos e adotados em virtude de uma criação alicerçada na disciplina rígida, porém afetuosa e compreensiva. Tinha na avó a figura de uma heroína, a imagem da força e da coragem, mas, em tempos, uma negra cortina fechava-se a sua frente, impedindo uma visão clara e serena daquela que sempre enxergara como exemplo de transparência.

Os momentos de obscuridade da avó o faziam pensar em coisas absurdas, situações inimagináveis como nos instantes em que ela passava ajoelhada ao pé de um pequeno altar, situado no canto esquerdo da sala principal. Havia ali objetos dos mais variados tipos e formas. Velas, incensos, imagens de santos que ele nunca soubera os nomes, muito menos de onde vinham. Eram amuletos, pequenos sacos de seda com estranhos e coloridos fragmentos no seu interior. Dentre todas as peças, a que lhe chamava mais a atenção, era a intrigante ampulheta confeccionada com ossos e fios de cabelos negros, tão negros quanto a lenta areia que escoava para a parte inferior do objeto. Dos poucos que viram a ampulheta, todos afirmavam que a areia mudava de cor ao passar, com a lentidão dos anos, do lado de cima para o lado de baixo; pois naquele a areia era alva e brilhante, e neste, negra e fosca.

Abriu os olhos e deparou-se com o grande movimento de pessoas que se agitavam na formação do cortejo. Fixou os pensamentos em tudo que aconteceria daquela data em diante. Passou pesadamente a mão sobre o rosto, bateu a poeira das calças, secou as lágrimas com o punho da camisa e pôs-se a caminhar no final do translado.

A cova já estava aberta quando os amigos, parentes e curiosos chegaram com o ataúde. Quatro estranhos carregavam o caixão. Um brilho tímido e cinzento dava o tom do pano de fundo que se mesclava à sinfonia das lamúrias, prantos e sussurros. O padre parecia apressado, talvez ansioso, vociferava rapidamente as palavras da cerimônia inerente a todos que naquela vila habitavam. Tinha os olhos encobertos, segurava uma dourada corrente com uma cruz e a cada instante acelerava ainda mais sua fala. Olhares se cruzavam com interrogações, somente quebradas por risos disfarçados em lábios cerrados.

O neto, ao longe, sentado em uma sepultura observava todo o ritual com um amargo gosto de ódio e repulsa “daquela gente”, que de um modo ou de outro, contribuiu para o fim de quem, em toda a sua existência, trouxera-lhe a visão real e espirituosa do mundo e o poder de lançar-se sem temores e questionamentos à degradante esfera do maldizer. Antes do dispersar total, uma última pá de areia foi jogada. Cravou-se na terra uma cruz, símbolo de morte e sofrimento, de fé e de resignação, de ascensão e de queda...

Uma chuva fina caia, diminuindo lentamente o amontoado de terra que cobria o caixão. Com um longo suspiro virou-se e iniciou um novo ciclo em sua vida.

A velha casa estava do mesmo modo de outrora, a cerca um tanto mais destruída, e as flores e folhagens, que antecediam a porta lateral, secas agora se encontravam. No interior tudo permaneceu intacto. O cheiro da avó misturava-se ao fumacento odor dos incensos e velas já queimados, os quais, eram somente mais fracos que o irritante ar poeirento e mofado dos tapetes e cortinas.

Passaram-se alguns anos após a morte da avó, e mesmo assim, o neto ali permanecera, solitário e em abandono completo. Gastava o tempo vago lendo, fazendo orações ao pé do altar e, depois de tanto tempo, ainda procurava saber o significado da intrigante ampulheta. Sonhava quase todas as noites com uma misteriosa figura, que lhe parecia ser uma mulher, mas sempre que ia descobrir-lhe o rosto, acordava aterrorizado e receoso pela repetição do sonho.

Completara trinta e nove anos numa sexta-feira do mês de dezembro de um mil novecentos e... Não tinha motivos para comemorar. Trabalhava para comer, era só e morava numa casa que dentro de pouco tempo iria ao chão. Neste dia, sentiu algo de insano lhe percorrer o corpo, sentiu o espírito turvar-se. Respirava compulsivamente. Arremessou contra o retrato da avó um pesado livro que estava lendo, debruçado na janela, de onde provinha uma luz avermelhada do horizonte que, aos poucos fazia seu sangue queimar nas veias como uma ardente fogueira, de chamas intensas e poderosas. Afastou bruscamente a velha e puída poltrona olhando ao seu redor com um ódio mórbido e pungente. Com um desejo de vingança que crescia desmedidamente, não se sabe de onde. Dirigiu-se ao quintal e apanhou o machado que estava cravado no espesso e rígido tronco de uma figueira.

Voltou os olhos para o céu e pediu perdão. Após o amém adentrou na velha casa, destruindo tudo o que via pela frente e o pouco que restava. Enegreceu a alma em diminutos instantes; golpes violentos colocavam ao chão os quadros, os vasos de flores e plásticas e sujas, mesa, cadeiras e lembranças. O suor vertia de sua pele clara, os cabelos cacheados lhe caiam pelo rosto assim como as lágrimas de sangue. Verde nos olhos não mais existia, apenas um ódio negro ali se encontrava. Apoiou-se no machado e lançou por entre os destroços a visão ao altar. Pulou sobre o pandemônio que criara e, sem hesitar, lançou pesados golpes sobre o que ainda intocável permanecia. As imagens, as velas, os incensos, os pequenos sacos eram arremessados à longa distância. Não poupara nem a intrigante ampulheta, que ao espatifar-se no chão, transformou a areia em sangue, cabelos em carne morta e os ossos em cinzas. Exalava um pútrido odor juntamente com a fina fumaça, que serpenteava naquela atmosfera mórbida, a qual circundou o revolto homem, levando-lhe a alma e deixando o corpo, para que sua sentença assim se fizesse, longa e de extremo padecer.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 25/02/2008
Código do texto: T874865
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