Áspero conforto

Vislumbrava através da fina fumaça de um incenso a queimar uma cascata de espíritos no sentido inverso, ardendo de sofrimento, banhando espectros vazios e solitários com um aroma amargo-doce-enebriante. Na parede oposta à cama, onde estava acariciando o velho e roto colchão, prostrava-se uma negra estante com portas abertas e dobradiças enferrujadas, repleta de livros empoeirados que mal se distinguia os caracteres impressos, salvo um deles, que apresentava a marca de um passar de dedos, podendo-se assim, ler o nome do autor e o título da obra. Era um clássico: Erasmo, “Elogio da loucura”, obra que apresentava uma sátira da sociedade dos séculos XV e XVI, e não tinha a intenção de mudar a sociedade, de lançar um manifesto de revolta contra os potentados da época, de renovar a Igreja, como tentara Lutero, seu contemporâneo. A intenção de Erasmo era fazer uma brincadeira e oferecer à própria sociedade um espelho de si mesma, para que ela própria pudesse também achar graça, ou rir à toa, ao ver-se tão ridícula, tão patética e tão mesquinha.

Sobre a prateleira mais alta da estante havia alguns retratos amarelados pelo tempo e roídos pelas traças, tão degradados ou um tanto menos que a imagem daquele escuro e úmido quarto que somente era agraciado pela luz, quando à luz do sol dava-se permissão.

Ouviu ruídos que vinham do corredor, não esboçou importância. Contínua e pesadamente permanecia num absorto indecifrável. Pela janela adentrava um ar frio, quase gélido, que fazia os lábios tornarem-se mais vermelhos que o habitual, por conta do roçar de dentes, e desatinava os joelhos a tremerem, não deixando que a mente controlasse os movimentos. O olhar continuava imóvel, mas atento a cada particularidade do serpentear da fumaça do incenso.

Subitamente algo lhe pousou na perna. Era ele. Tinha os olhos sôfregos, mas parecia sorrir com a imagem daquela melancólica tarde de agosto que se fazia a caminho do fim. Premeditando a noite da vida. Voltou a ele vagarosamente a cabeça, retribuiu o olhar e retornou a visão ao ponto inicial. Ele permaneceu apoiado, imóvel, por mais alguns instantes. Mendigava atenção implorando um simplório carinho. Cansado de indiferença e quase total abandono, retirou-se. Foi até a porta sem olhar para trás. Ultrapassou os limites do quarto e lançou um olhar desolado. Ao fim do corredor parou, voltou-se e velou um longo minuto aquela existência moribunda de matéria e ausente de espírito.

A noite e seus tons brindavam os distantes e torturavam os observadores. Os joelhos não mais tremiam. Levantou-se, foi até a janela e a fechou. O incenso não passava de cinzas e lembranças. Tomou a capa de um livro que servia de porta-incenso, levou até a altura dos lábios e soprou, espalhando a poeira sobre as fotos. Com a mão branca e trêmula passou levemente a palma sobre um dos retratos. Faziam parte da imagem um lago, uma árvore, seu pai, sua mãe, os dois irmãos e ela própria. Não demorou muito, e dentro de segundos transportou-se para dentro da fotografia, e se imaginou vivendo novamente aquele dia...

Eram oito horas da manhã, uma buzina aguda e irritante era direcionada ao interior da casa ainda adormecida. O som não cessara até que alguém surgiu a porta acenando e fazendo sinal para que entrassem.

Eram nove horas quando as duas famílias partiram para o passeio que fora planejado havia dois meses. O dia era uma pintura, o local escolhido uma harmoniosa canção e a conversa pura poesia. Recolhiam as toalhas e as cestas... um forte ruído soou ao longe um tanto abafado. Buscou com os ouvidos o local exato do barulho seco e rápido que parecia se repetir em sua cabeça tempo após tempo.

Na rua que ficava após o muro dos fundos da casa, um caminhão da companhia de energia elétrica fazia reparos.

Voltou novamente o olhar para o retrato. Almejava retomar as lembranças daqueles dias felizes, mas a mente não mais conseguia compenetrar-se no passado após o romper do silêncio que se dera a pouco, e pouco, e pouco...

Ela, que por muito não deixava o quarto, resolveu, “sabe Deus por qual motivo”, plantar-se a frente do corredor que colocava aquele claustro para trás. Pôs-se a andar depressa com um pensamento desvairado na cabeça, um sentimento inconfundível no coração e a certeza de que não veria nada vivo no local de onde teria sugado o verdadeiro horror do real episódio, lançando seus olhos a um mundo que não queria mais ver...

A cozinha não possuía mais aspecto de cozinha a mesa não tinha o caráter de mesa os móveis todos tinham traduziam sim a determinação de tudo o que se pode imaginar exceto de tudo o que um dia fora denominado... tinha-se lá apenas a imagem vermelha e decomposta da... ou de uma vida sobre o jaz branco dos balcões... a comida que lá se fazia era de um prazer enorme pela quantidade de riso e união aqueles que ali jantaram ou almoçaram tiveram sem contar o prazer medir a descontração e a ótima receptividade um deleite de total satisfação de que o mundo oferece a todos que dele gozam uma sustentável, tranqüila e não preocupada existência sofrível salvo a imagem que provinha da cozinha emoldurada pelo coagulado vermelho e pelo horror da crueldade humana que ali agora e para todo sempre seria avistado e...

O caminhão da companhia de energia elétrica saíra, o conserto fora efetuado.

Ele, um pouco mais calma, retornara a “realidade”. Voltou ao quarto, sentou-se novamente na cama e pôs-se a observar o mar através da janela. A maresia impregnava o ambiente, e o úmido odor salgado inundava o cômodo, molhando seus pés, pernas e roupas. Levou categoricamente as mãos ao chão, buscava equilíbrio, o retorno total à realidade, já que dia fora novamente de delírios e alucinações quase palpáveis. Lançou bruscamente o corpo em direção oposta ao mar, sentiu o forte impacto da cabeça contra a parede. A janela não via mais, nem tampouco discernia se aberta ou fecha estava, nem mesmo sabia onde se encontrava...

Com as mãos sobre os joelhos, ele, quase imóvel, escutava atentamente as explicações do doutor.

- Bem, a esquizofrenia compreende um grupo de psicoses funcionai, portanto não causadas por qualquer lesão cerebral, que provocam desintegração progressiva da personalidade. A causa da esquizofrenia constitui um dos grandes enigmas da psiquiatria. Algumas vezes existe uma causa próxima: hereditária, tóxica ou infecciosa; em outras, não é possível precisá-la. Em suma, ao que parece, sua esposa sofre de uma forma paranóide de esquizofrenia. Essa forma ocorre geralmente após os vinte e cinco anos de idade. No início, os portadores dessa forma paranóide, apresentam insônia, modificações do caráter e idéias instáveis, transitórias, com absurdos de perseguição. O agravamento do quadro, por sua vez, traduz-se por alucinações visuais, auditivas, tácteis, egocentrismo fortemente marcado tendendo, muitas vezes, para o misticismo...

Saíra do consultório ainda conversando. Atravessaram um pátio com um caminho de pedras rodeado por árvores e bancos de mármore branco salpicado de tons de cinza. Ele e o doutor chegaram a ala dos internos cinco minutos após a saída do consultório, não que o caminho fosse longo, mas ao passarem pelo pequeno lago, que projetava o brilho do sol e espelhava o claríssimo céu azul, pararam algum tempo contemplando a paisagem e respirando momentos de paz.

Trezentos e cinco. Era o número marcado na porta do quarto. Tinha uma pequena abertura possibilitando a visão de seu interior. O doutor, que era um homem franzino, de baixa estatura, bigodes e barba bem aparados e ligeiramente calvo, pôs-se em pontas de pés para poder observar o paciente através da abertura protegida por um gradeado de ferro no lado exterior, que não media mais que uns vinte por vinte. Ele estava sentada na cama, vestia um espécie de uniforme de enfermeira (só que sem botões e sem bolsos), mas não apresentava as feições de uma. A cor da pele confundia-se com a das vestes, tinha os olhos pálidos e rasos d’água. O marido pediu permissão para entrar; o doutor não consentiu. Deixou-o apenas observar pela abertura, aumentando assim sua angústia. Permaneceu ali por alguns minutos, mais de dois e menos de sete, com as duas mãos pressionando a porta, o rosto colado à proteção de ferro e, não diferente da esposa, com os olhos úmidos e paralisados, os quais exprimiam uma mórbida vontade de pôr abaixo aquela porta e levar a mulher para casa ou, se possível fosse, trazer à vida, a mãe assassinada da esposa que cobrira o branco dos móveis da cozinha de um denso e turvo sangue, enterrando a serenidade daquele corpo que desde tal acontecimento movia-se sem vida.

Ele sentiu um toque nas costas. O doutor o chamou e avisou sobre o fim da visita. Por um instante o homem, já castigado por tudo aquilo, sentiu desejo de se encontrar na mesma situação da esposa, assim, não possuiria a capacidade de discernir o dia da noite, o prazer do sofrimento, o viver e o não viver.

Lançou um beijo e um aceno e caminhou, trêmulo e vazio, ao lado do doutor até ao portão de saída. Seu carro encontrava-se do outro lado da rua. Acendeu um cigarro tragando-o com calma tácita e introspectiva, enquanto mais a frente, os funcionários responsáveis pela limpeza pública varriam as calçadas, tão distraídos como a esperança que se dissipava na fumaça do cigarro.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 25/02/2008
Código do texto: T874863
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.