A morfossintaxe e o ku quadrado

A morfossintaxe e o ku quadrado

Mal conheci meu pai, negão bem preto, pintudo e a opulência a contrastar-se com a aridez do derredor. Acreditava no pulsar das veias, amansava burro brabo e nossa sobrevivência custava-lhe às unhas. Melindrou meu pai, entristeceu, entristeceu muito... Entristeceu. Não sabia dissimular, não sabia construir império em cima de mentiras assim como os doutores da nossa língua. Melindrou... Não suportou a traição da amada/Joana/minha mãe, não tomara lições com gramáticos. O calabre no pescoço atou e despencou do alto da aroeira. Das entranhas eclodiu o grunhido de bicho, espernegou, estremeceu inteiro, e os pés sem vida soltaram-se dos sapatos rotos. Fez-se a morte, o fim, o silencio... Mas isso faz muito tempo.

Quenga era a minha mãe, Joana. Aliás, quenga, não: deitava-se com quaisquer homens em troca de algumas moedas com as quais comprava creme para os cabelos negros, batom vermelho para os lábios finos e pó para o rosto enrugado. Roupas, raramente comprava: vivia mais nua do que vestida. Ultimamente, porém, a situação se invertia: vivia mais vestida. Os fregueses não a queriam mais. Diziam-na puta velha, feia, desdentada, bunda mole, peitos caídos como os da vaca Tonha. Por pensar que brio não enche barriga, sorria amarelo, tão amarelo que nem o pó disfarçava o constrangimento a romper os músculos os da cara.

Declarou guerra a Geni, minha meia irmã, que se botava mocinha e atraía galanteios e suspiros da macharada constantemente de prontidão na porta da nossa casa asquerosa. Ofereciam bom dinheirinho, uma cabra ou dúzias de galinhas pela virgindade da menina. Um tal Bodão oferecia duas cabras e um cabritinho fuleiro e enxerido. Mais que isto ele não dava. Geni não valia. Era novinha, virgem... Mas era raquítica demais e lhe faltava açúcar ou sal.

O chefe da família, Tecão – padrasto meu e pai de Geni - vivia bêbado e às turras com Joana que lhe escondia as moedas para que não torrasse tudo na cachaça de má qualidade. Quando estava de pá virada (principalmente quando comia algum viado e deste não conseguia extorquir um ou dois cruzeiros), Tecão espancava a todos nós impiedosamente. A dor era apenas física e como estávamos acostumados, nem doía tanto assim. Logo esquecíamos e íamos rolar na terra vermelha com os cachorros sarnentos. Dor moral é tolice e nada vale por aqui: manter-se vivo é o que interessa.

Mais uns meses e eu já ia ser de maior . Não sabia fazer nada a não ser assinar o nome com o polegar e trepar em Dedinha, uma jumentinha que eu comia desde filhotinha! Mas disso falo depois. Estava prestes a arribar, encontrar meu quinhão nos túneis do metrô paulista ou mesmo no Carandiru. Coragem eu tinha, caráter desconhecia e suscetibilidade não me atingia. Perfeito habitante para a cidade de todas as caras. Além do mais, eu tinha um secretíssimo: pretendia cometer suicídio aos vinte anos. Por dois anos suportaria qualquer sofrer.

Em casa não havia condições de continuar. Geni foi comida pelo pai e minha mãe, furiosíssima por perder a chance de lucro, fazia um inferno da vida de Tecão. O covarde virava-se contra mim e tudo era motivo para me socar o pau. E ainda alegava que me surrava porque eu metia com Dedinha em qualquer lugar, inescrupulosamente. Ah, como eu amava minha jumentinha. Se eu pudesse fazer um mundo onde pudéssemos amar sem sofrer as conseqüências do preconceito.

Certa noite eu sonhava, sonhava não, delirava entre as quatro patas macias e acariciadeiras de Dedinha. De repente, acordei, entalada a respiração, como se despencasse do oitavo andar: o infeliz do Tecão fungava e babava no meu cangote. Nojento! Já estava dentro, deixei. Era um pintinho de merda... Mas, no dia seguinte, todo fudido, contei à vizinhança sequiosa por linchá-lo. Mas não o apedrejou. Ninguém nos molestava. Éramos úteis. Era para nós que apontavam todos os dedos quando a comunidade carecia sentir-se limpa, digna, portanto.

Prestes à minha partida, desatei a gargalhar porque Joana jogou um caldeirão d’água quente, quase fervente, no lombo largo de Tecão. Flagrou-o gemendo e dizendo coisas de tesão a Bodão, enquanto este, férreo, enrabava-o.

Feito tatu, dentro do buraco do metrô, recostei a cabeça na pedra para descansar. Essa dislexia sempre a me causar problemas: é da Grécia Antiga, exatamente da província do norte, a Macedônia; ainda não é isso. Quero falar da forma como a infantaria macedônica se agrupava quando ia à guerra: dezesseis soldados de frente sobre dezesseis de fundo, formando um quadrado, um SINTAGMA, um contingente de 256 soldados que compunha único corpo, apesar das individualidades! É disso que fala o livro da Doutora (achei na rua) que quero compreender e virar doutor também. De quebra, um método bombástico para melhor reconhecimento de classes gramaticais e carantonhas.

Entrei no supletivo e soquei a vara: estudava de noite e de dia. Largava a lambreta de baiano – também conhecida por britadeira – e ia soletrar lexema, gramema e grafema, separar o arquivo aberto do fechado, esquartejar os eixos sintagmático/paradigmático, definir todas as funções sintático/semânticas e chamá-las por nome e sobrenome. Um vasto mar de “suposições inúteis e bestiais”, como dizia um do Ceará, abaixo da média, fanático por Paulo Coelho. O dois-em-um – rádio e gravador – comprei em muitas parcelas. Ligava-o baixinho para ouvir musicas que me faziam lembrar o que ficou para trás: Dedinha e o sertão:

“... mesmo que doa

Mesmo que abra ferida

Guarde as verdades da vida

Coração

Tudo é verdade

Coração

Desde que sintas

Desde que não mintas

Jamais...”

Esticava, inchava, ameaçava pular fora da calça e estourar-se de prazer num arrojo de vida própria, indiferente ao meu querer. Havia dias em que não conseguia me concentrar em morfossintaxe e a farta/bunda/generosa de Dedinha roubava-me todas as funções vitais. Quando estava só batia uma punheta e sossegava. Quando não, desviava dos peões, entrava num cinema pornô e comia um viado sujo, num banheiro imundo. Acalmava-me, então, e corria a vista no livro verde, escolhia uma página e iniciava o esmurrar pedra.

Mas é da suruba entre morfologia, sintaxe e ku quadrado que quero ensaiar. Não sei se começo pelo começo ou pelo fim...

“Basta-nos dividir o acervo de palavras do português... base representativa semântica da realidade... O, de vários, sobre a – são grafemas; e livro, alunos caiu, mesa preferido – lexemas” (Prática de Morfossintaxe p. 6 e 7).

Se Dedinha me visse estudar tais complexidades orgulhar-se-ia de mim e diria que tudo isso é grego. Dedinha aprendia pouco e com dificuldade. Jamais compreenderia como uma palavra (seja de qual natureza for) pudesse ser estudada como desprovida de sentido no mundo biossocial/antropocultural.

“(7) homem grande/grande homem” (Prática de Morfossintaxe p. 12)

Para Tecão aceitar que estas frases são ‘pareia’ com homem alto/Homem virtuoso, tinha que pegá-lo numa ‘veia’ boa. Se estivesse com meio litro de pinga na cabeça oca, dar-me-ia um safanão e berraria nos meus ouvidos: o que tem a ver o cu com as calças, pedófilo de jumenta? Mas ele é muito ignorante, melhor relevar...

“Observe como o sintagma à saúde não é autônomo, pois não se articula ao verbo ser, o que geraria uma frase sem sentido * o ódio é à saúde. (Pratica de Morfossintaxe, p 45).

Quando o gato não come, joga-se debaixo do tapete. Melhor que morrer de vergonha. Não foi o que vitimou a preposição que a crase indica? O asterisco é só para indicar um quê natimorto.

“Parece-nos que as crianças têm aprendido na escola o que é um substantivo, adjetivo ou verbo apesar dessas definições e não por causa delas”. “Se nos ativermos a características e a mecanismos essencialmente de caráter morfossintáticos (ou só mórficos, ou só sintáticos) da língua, veremos que se pode reconhecer com mais segurança as palavras que constituem o sistema aberto, exigência imprescindível já que é impossível decorar todo o acervo”. (Prática de Morfossintaxe, p. 13).

Deu-me vontade de voltar para a terra de Iracema, encarar meu padrasto e nunca mais deixá-lo comer minha irmã. Bem que eu podia lhe cortar o saco, enquanto dormisse. Mas, e depois?

“Não se pode esquecer de que estamos afirmando que é necessário verificar sempre se a palavra que está recebendo o acréscimo sintático do intensificar é variável em gênero e/ou número (este, um requisito mórfico) e se, também, está articulando-se junto a um substantivo, com quem forma um “par perfeito...” (Pratica de Morfossintaxe, p. 19).

Par perfeito me faz quase chorar porque lembro Dedinha: eu e ela somos muito mais perfeitos que substantivo e adjetivo. Amo minha asninha... É minha cara falar... Dane-se o senso comum.

“Pode-se mesmo afirmar que, se o adjetivo é o grande modificador do substantivo, o advérbio é o grande modificador do próprio adjetivo. Observe quantos efeitos de sentidos é possível conseguir com essa combinação: ser meigamente atuante/ ser absurdamente inteligente/Estar estonteantemente vestido/Estar preocupantemente sonolento”. (Pratica de Morfossintaxe, p. 24).

A diferença entre as frases ‘estar vestido e estar estonteantemente vestido’ é uma questão de “efeitos” somente ou trata-se de outra situação? Um dos que davam moedinha à minha mãe dizia que Frei Damião e frei de caminhão podem ser a mesma coisa, dependendo apenas do ponto de interesse de cada um. Interessa o fato ou a versão que se dá a este? A ONU diz que somos os mais burros do mundo. O que este órgão internacional tem a ver com nossa preferência em andar de quatro e relinchar?

“Em relação às interjeições, estudos mais recentes e lingüistas de maior expressão vem considerando-as palavras-frase, pois constituem em si só verdadeiras orações”. (Pratica Morfossintaxe, p. 25)

Tecão, aquele animal, precisava ler (ouvir) isto. Quem sabe assim mostraria boa vontade e aceitaria Dedinha como nora? Até porque não existe tanta diferença em ser quadrúpede ou bípede. Tudo se resume a mera questão de quantas patas movimentar para se obter a locomoção.

“9. Em vi uma estrela tão alta, o termo ‘uma estrela tão alta’ também pode ser trocado por um pronome reto. Por quê? Resposta: o termo uma estrela tão alta não deveria ser trocado por um pronome reto ela: a construção não seria aceita pela norma culta. A troca deveria ser formalmente feita pelo pronome oblíquo a: Vi-a”. (Pratica de morfossintaxe, p. 32 e 144).

Lá em casa ninguém ia à escola: bobagens, aprendíamos sozinhos. Ninguém me ensinou a amar Dedinha. Nós mesmos fomos nos descobrindo. Ela ia urinar eu ia atrás; ela se abria e se fechava para mim como se mandasse beijinhos. Meu pintinho começou a saltitar e aí emendamos o grande amor.

A expressão “ser trocado por um pronome reto ela” me faz lembrar o pinto ridículo e tosco de Tecão roçando minha bunda lisa. A senhora Norma Culta, que não viu a infâmia , ruborizaria e explodiria.

“Parecia estar perto demais da traição” (Prática de Morfossintaxe, p. 82).

Foi esta frase contestatória que originou esse texto sem classificação. Quer dizer-me que isto é um ensaio, um conto, uma crônica? Isto é uma coisa, a COISA.

“O culpado sois vós” (Prática de Morfossintaxe, p.76).

Ao bissexual (os conterrâneos nordestinenses chamam-no Giletão) que queria largar mulher e filhos para ser feliz comigo, disse que estudava avidamente morfossintaxe; ao que ele disse: ‘enquanto a natureza berra mudança no paradigma civilizatório, perde-se tempo, dinheiro e neurônios em suposições para explicar a nomenclatura bestial que não serve para nada’.

“Ainda que em qualquer nível de análise das unidades lingüísticas de comunicação, a força das leis sintáticas deva ser sempre exercida, é apenas quando a frase contiver linguisticamente em si todos os dados para a comunicação, sem necessidade da mímica ou da situação para completá-los, que poderá ser tomada como oração”. (Prática de Morfossintaxe, p. 37).

A gramática e eu somos símiles. Em nome do pai, do filho e do espírito santo. Amém.