Incorrespondência Amorosa

O sol tinha se posto há pouco tempo e o céu estava com uma tonalidade azul marinha da qual muito amo. Desde pequena que gosto da cor azul e suas variantes. Ele preferia prata.

O padre dizia coisas incompreensíveis para mim, não que eu não falasse a língua dele, nem por que tenho problemas de audição, mas meus pensamentos não me deixavam em paz naquele momento. Sempre odiei enterros desde a morte de minha mãe.

Muitas pessoas estavam presentes, todas obviamente de preto. Preferi ficar um pouco afastada de todos, mais fora do círculo de pesares ali formado. Eu era apenas uma grande amiga do falecido, a melhor amiga de fato, mesmo assim, só uma amiga e nada mais.

Segurava minhas lágrimas com força, meu orgulho sempre foi maior até que minha esperança. Não fui ao velório por conta desse motivo e outros mais pessoais: caixão aberto. Apenas acompanhei a marcha fúnebre e quando chegamos ao cemitério cumprimentei de forma ligeira a viúva: - Meus pêsames...

Mulher muito bela, corpo de jovem, pequena, muito caucasiana, pele suave e bem tratada. Parecia ter quinze anos menos a idade que realmente tinha. Seus olhos de uma entonação profundamente escura envolviam aqueles que os olhasse diretamente, não importando quem assim o fizesse. Seus cabelos ruivos bem escuros, quase negros, davam-lhe um ar exótico. Os lábios dela faziam com que qualquer um a quisesse, eram pequenos e róseos como pétalas de cerejeira. Eu mesma desejei beijá-los mais de uma vez.

Fiquei distante do caixão todo o tempo relembrando nossos momentos juntos. De quando nos conhecemos, o modo que ele veio me oferecer um cigarro naquele bar sujo. Quando viajamos pela primeira vez de avião, o modo como ele se segurava firmemente pela poltrona cheio de medo, e eu segurei em sua mão para acalmá-lo, ele sorriu e eu me senti corar. Queria ter entendido antes por que corei naquele momento. Lembro-me melhor ainda de quando ele disse aquelas palavras, na época, fatídicas: - Eu te amo...

Tudo é tão irônico. Desde jovem sempre fui altamente reclusa. Não era de falar muito, não por timidez, falava apenas o necessário, era mais animada apenas com algumas poucas amizades, cinco pessoas no máximo. Ele era uma dessas, mas com ele desde o começo foi diferente. Me cativou fácil e eu me sentia livre perto dele. Fizemos muitas coisas juntos, desde voar de asa-delta, até viajar pelo país como mochileiros por alguns meses, sozinhos.

Começam a descer o caixão, balanço a cabeça desanuviando pensamentos. Deixo de prestar atenção no céu, que agora já está enegrecido. Chego perto da cova e observo o caixão descer, não consigo conter uma lágrima que percorre salgada e ardida por minha face. Tiro um papel dobrado do bolso, o acaricio. Depois, com certo receio, deixo-o cair em cima do caixão. O papel era um bilhete dele, a última declaração de amor que ele tinha me feito:

“Meu amor...

... infelizmente não nos veremos mais, terei de partir. Por favor, não pense que a culpa é sua, pois não é. Culpado sou eu por não poder conter dentro de mim imenso sentimento. Culpado sou eu por sofrer em conta de sentimento tão nobre. Culpado sou eu por ter me deixado levar pela extrema amizade afetuosa que você tem por mim.

Conheci uma pessoa, ela é linda, é perfeita, pensa como eu em muitos aspectos, é carinhosa, me compreende. Acima de tudo, sinto uma leve atração por ela, talvez ela seja a chave para que eu supere esse meu amor não correspondido por ti.

Te amei mais que qualquer mulher que já tive em vida, mas ela nunca saberá disso. Sempre pensarei em você, é inevitável. Mas não sei se suportarei mais viver próximo de você. Teria medo de começar um relacionamento com ela e depois acabar estragando as coisas por conta de meus sentimentos. Sei que entenderá. Se não entender, conheço sua frieza e sei que não se importará tanto com minha ausência.

Não te abandonarei por completo, sempre lhe farei visitas, ainda somos grandes amigos. Sempre seremos.

Um afetuoso adeus de seu anjo.”

As primeiras palavras que saíram de minha boca depois que encontrei o bilhete foram: - Egoísta! Cretino!

Depois disso ele foi morar no estado onde sua suposta “nova paixão” estava. Pela primeira vez em minha vida senti ciúmes. Apenas alguns meses depois compreendi que sempre o amei. Considerava o afeto que tinha por ele como uma enorme amizade apenas. Afinal, o tinha como meu melhor amigo. Já o havia chamado de irmão - certas vezes até de pai -, mas o apelido pelo qual mais o chamei foi: “Meu anjo...”.

Em toda a minha vida, logo após ele ter ido embora, sempre supri uma esperança estranha de que ele pudesse voltar para mim. Talvez a outra terminasse com ele. Talvez ele não conseguisse me esquecer. Talvez ele enxergasse que fomos verdadeiramente feitos um para o outro. “Deus! Agora sei como ele se sentiu o tempo todo!”; dizia nos piores dias de saudades.

Quase chorei quando entendi como ele sofria por um amor não correspondido, agora quem sofria era eu. Definitivamente a pior coisa do mundo, inexplicável, incompreensível, indestrutível - a não ser que o sentimento fosse correspondido. No fundo de minha alma sabia que nunca mais o teria para mim, mesmo assim as falsas esperanças continuavam.

Como prometido ele me visitava, mas fui tão fria com ele em nossos breves encontros que aos poucos desistiu de me ver. A princípio vinha quase seis vezes por ano em feriados, certas vezes arrumava folgas do trabalho só para me encontrar. Eu o recebia como uma pedra recebe uma onda. Aos poucos ele começou a vir apenas quatro vezes por ano, depois duas, até que passou apenas a me escrever ano sim, ano não.

Tempos mais tarde, quando até as cartas cessaram, recebi um telefonema de uma mulher. Aquela voz afável e doce era dela, sua esposa. Ele havia morrido aos quarenta e dois! Câncer pulmonar... Ela sabia o quanto ele me considerava sua amiga e me chamou para o enterro. Relutante, fui.

Agora jogo aqui a carta de amor e despedida que ele me fez com tanto sacrifício e lágrimas. Não o faço com esperanças de finalmente esquecê-lo, pois sei que nunca esquecerei, mas isso marca que minhas esperanças finalmente acabaram. Nunca mais o terei.

“O amor é uma flor que desabrocha em meio a um jardim de ervas daninhas...”; ele havia me dito isso uma vez. Só agora entendo que certas vezes quando entre diversidades quase impossíveis um verdadeiro amor pode surgir. Pena essas diversidades terem vindo tão cedo para ele e tão tarde para mim.