O DIA SEGUINTE
O clima era manhoso com enfeites nas arvores. À tona surgia, por entre os becos e as vielas...Nas casas do centro um perfume fictício, um sentido bonito, os adornos de natal.
Era natal...Natal nas músicas produzidas pelas rádios, natal pelos encontros dos antigos amigos as pressas nas ruas estreitas do comércio local, era natal nos verbos, que as diversas bocas repetidas vezes, repetiam...Era natal naquelas primeiras chuvas finas, que desciam sobre o leito da terra, como aljôfar de neve, abrindo sulcos, onde os barquinhos de papeis, em disputas rumavam ao infinito e acessavam a alegria de um grupo de meninos da cidade,que em suas duras realidades, ainda se via brincar.Eram carreteiros, picolezeiros, jornaleiros, saqueiros e outros meninos esboçando naturalmente em segundos a infância, as vezes adormecida no corre - corre da vida, que a opressão da desigualdade social não podia proibir de aflorar.
Na estiagem da chuva capim seco com terra molhada, cansados os meninos assentaram-se no chão úmido e duro da avenida rabiscando o chão, como se aclamassem a Deus, contavam ao mundo seus desejos natalinos.Jorginho queria um trenzinho., Serginho uma bicicleta, Albertinho uma bola de futebol e Zequinha um carrinho, com uma boneca para a sua irmãzinha, Nicinha.Uma menina como espécie de mascote da turma, que no momento só estava no pensamento de seu irmão, até que Serginho expôs:
- qual é turma, Papai Noel não existe?!...
E todos pausaram os seus pensamentos.Entreolhando-se Zequinha, o menor da turma disse: - O meu padrasto falou, que esse tal de papai Noel não existe mesmo! É conversa molhe dos riquinhos, que tudo isso é besteira.Ninguém ajuda ninguém, tão pouco nos dá alguma coisa se a gente não trabalhar.Afinal nada cai do céu a não ser chuva e sol.
Um silêncio tomou conta daquelas crianças inquietas e sem dizer nada momentaneamente a turma se ergueu.
Num suspiro de recomposição de esperança recolheram o que sobrou e seguiram quarteirão a frente cabisbaixos entrando no futuro em passos de presente, já pensando em voltar para suas casas,quando aos olhos saltou do escuro àquele casarão bonito, luxuoso, todo decorado com as pompas do natal, ocupando imponentemente todo o quarteirão. Às vezes, escondido por detrás de um imenso muro verde musgo de mais ou menos quatro metros de altura, que a custo tentava proibir a curiosidade humana de quem passasse por ali, de ver o que estava no imenso quintal.
Era noite de natal, apesar do ano sofrido os ânimos estavam nos rostos.A brisa, que se fazia naquele instante carregava no ar o aroma das guloseimas e o clima tropical refrescado, dava um tom sublinhado de luz, que nem mesmo as muralhas tão imensas conseguiriam impedir de passearem pela rua e pela imaginação daqueles meninos.
Foi então, que Albertinho investiu na idéia:
- Vamos subir e ver o que tem do outro lado de tão gostoso! Mal acabara de pronunciar-se e o Zequinha foi logo pegando um pedaço de pau, escorando no muro
e quase pronto para escalá-lo Jorginho pacientificou:
- Esperem!Pode ser perigoso invadir uma mansão dessa.Acho melhor irmos pra casa, afinal já está tarde e ainda estamos longe.
Mas Albertinho conseguiu persuadi-los de forma que todos acabaram por escalar a primeira dificuldade.Depois veio a forte curiosidade infantil de ir mais além, mesmo sem conhecer o perigo.E lá de cima resolveram descer por um galho da mangueira.Escorregando até o colo do tronco e ai desceram por uma escada que estava alçada na árvore.
No chão, com plena liberdade ante o medo correram em direção ao janelão pintado de prateado, com enfeites verdes e vermelhos, sapatinhos e bolas de vidros em dizeres de Feliz Natal.Nesse momento a chuva acudiu as flores, encharcando ainda mais aqueles meninos maltrapilhos, sujos, com os pés descalços e a fome continua na barriga, que em desespero, confusos esbugalhavam os olhos num empurra, empurra na imensa vidraça, pois diante da ignorância, num lampejo de horas, os seus sonhos perpassarem a sua frente...Era o trenzinho que rompia a solidão da árvore de natal no centro da sala, o carrinho de plástico na garagem de brinquedo, a bicicleta quase que deitada às proximidades da lareira de enfeite e a bola solta no sofá com as bonecas de espécies variadas, ainda adormecidas uma ao lado da outra esperando uma princesa para despertá-las.Sem falar nos outros brinquedos mais sofisticados a fazerem parte do acervo de mesa, que estava repleta de comida.As tais guloseimas variadas, jamais vistas cujos nomes e sabores eram totalmente desconhecidos por cada um deles.
Diante de tudo aquilo, por alguns minutos ficaram pensativos, perdidos num espaço próprio, entre o real e o imaginário; entre as paralelas do futuro em aberto e o presente distante.
De repente, Jorginho perguntou as horas, Serginho, o único que sabia ler afixou-se ao ponto superior daquela casa, onde estava um imenso relógio,mas não identificou o horário direito, visto que foram tomados de novo assalto, quando um homem loiro, alto, barrigudo, com a barba branquinha e comprida, vestido de vermelho e branco, carregando um saco encarnado e grande nas costa fez firulas e disse em alto tom: Hô,Hô,Hô...Feliz Natal a umas crianças que apareceram com sua mãe ali.
Ecoou uma dúvida enorme nas cabeças daqueles meninos.Seria aquele o papai Noel então?...
Jorginho vivaz, rompeu o silêncio e confirmou com alegria:
- é o Papai Noel! Ele existe!...E todos o acompanharam num festejo inocente, de gente que sente falta de um mundo melhor e que só quem foi criança um dia sabe dizer muito bem.
Com a gritaria, na mesma hora, foram também descobertos pelos donos da casa, que estavam do outro lado da janela.E num surto de agonia o pai, que era o Noel saiu a frente da casa com uma arma em punho, gritando pelos seguranças, pedindo ensandecidamente que soltasse os cachorros, pois a sua mansão tinha sido invadida por um bando de pivete.
Os cães investiram contra os meninos, que no vácuo do susto repentino romperam a barreira do sonho e mais que depressa entraram na realidade para saírem vivos.
Entre galhos quebrados, gritos, correrias, arranhões, palavrões, medo e rostos assombrados toda a vizinhança e o casarão foi acordado.
A polícia imediatamente acionada, os vigilantes com lanternas, espingardas, algemas e uma cachorrada rastrearam minuciosamente o imenso quintal e não acharam nada.
Papai Noel era um símbolo nítido de força e de um outro medo.Ainda com a arma nas mãos gritava com os seus funcionários e com a policia, por ver a sua segurança e de sua família facilmente burlada.
Não longe dali os garotos, se refazendo do susto, entre risos e comentários abertos, já na ponte do galo assentavam-se na estiva da rua principal e com os pés descalços na água da baia do Guajará, sob um luar boêmio e um silvo pálido do vento, que falava daquela noite chuvosa e fria, cada qual em seu sobressalto, cansados da lida do dia, sem dizer nada seguiram para suas casas e adormeceram na esperança de receber o Papai Noel e ter os seus pedidos atendidos.
Ao amanhecer, sob um sol de quarenta graus, Jorginho e Zequinha seguiam como sempre, com o seu carrinho de mão para feira, onde faziam seus carretos.Albertinho foi quem levantou mais cedo pra vender os seus jornais e Serginho com a sua geladeira de isopor já estava na porta da escola vendendo o seu picolé, enquanto Nicinha, inocente a tudo, brincava alegre e satisfeita com uma cabeça de boneca, que ela guardava com muita estima e afeição.
Lá pelo meio dia os meninos se encontraram e entreolhando-se meios cépticos, tristonhos, sem dizer muita coisa juntos, num canto qualquer da ponte do Barreiro, deixaram as lágrimas debutarem o que a alma queria enfim dizer.
Só interrompido quando um deles tomou coragem de dizer e perguntou no tempo:
- Porque será que o Papai Noel não veio nos visitar?...Será que fizemos muitas malcriações, como diz a mamãe?
Serginho então exclamou: Pois é...Tanta comida gostosa naquela casa e a gente com fome.Se o pessoal daqui soubessem, se pudéssemos dar para todos, ninguém mais no bairro teria fome!
Albertinho calado, esboçou um sorriso amarelo, enquanto Jorginho falava:
-É turma não dá para entender, é tudo tão diferente do que a gente vê na tv.
O sol a pino dizia meio dia, rapidamente enxugaram os rostos, cabisbaixos e sem respostas seguiram o que lhes proporcionava o dia.
Alberto Amoêdo
18.11.97