Do cume ao abismo

Os convidados chegavam vagarosamente. Caminhavam pela charmosa e romântica estrada que precedia a porta principal da imponente imensidão do palacete. O brilho emanado pela edificação, que possuía uma imensurável quantidade de luzes, era somente menor na intensidade e na diversificação de cores e tons que os homens e as mulheres da fila formada ao longo do impecável caminho.

Da entrada à residência do anfitrião, o desfile de poder político e econômico apresentava-se descomunal, de dimensões construídas por anos de exploração das reservas naturais, tudo alicerçado na mão de obra em visível prisma de quase escravidão.

Risos, fartura e falsidade preenchiam os diálogos, às vezes estridentes às vezes sussurrados. Uma cascata artificial dava o único ar de pureza intencional, que se misturava ao som das taças nutrindo-se do champanhe, tendo assim os olhos atentos ao erguer soberbo das minúsculas bolhas, que rebentavam no auge da banalidade dos atos e cumprimentos sordidamente carregados de hipocrisia constante.

O som da cascata veio-lhe à mente na deplorável imagem do encher uma vez mais seu copo com a vodca barata, servida de modo rude e mal humorado pelo dono do bar que se tornara uma imagem permanente em sua vida.

Cadenciado, buscava uma explicação para sua angústia. Estar vivo era um motivo de felicidade? Talvez. Presenciou tempos de alegria e fartura. Agora, vislumbrava todos esses momentos no fundo de um copo sujo e impregnado de repulsas e maldizeres. A mesa do repugnante bar tinha, para ele, imagens de possíveis saídas ao seu desmoronamento, contando, simplesmente, com as lamúrias e desejos-sonhos de uma platéia atenta à desgraça alheia e também, como todos que ali se encontravam, com o inferno pessoal de cada um.

O barulho do ventilador perturbava os pensamentos. Não conseguia chegar a uma completa paz de espírito com a situação totalmente inversa aos outros tempos. Habitava agora um barraco, perdera mulher e filhos a um sócio, que também ficara com sua mansão e vida.

Desde que ali chegara não passou um dia sequer de plena sobriedade, gastava compulsivamente o dinheiro que trouxera. Retornava à inumana moradia quando completamente bêbado estava. O lugar tinha apenas uma porta, não possuía janelas, e uma casa sem janelas é como uma face desprovida de olhos; desfigurada, sombria e misteriosa, que traz o lúgubre vazio incógnito da morte.

Uma intensa chama o queimava, abrasando seu interior, e o sabor amargo do erro atroz descia dilacerando sua garganta. Em sua existência de agora existia um pútrido e tortuoso caminho entre a razão humana e o Divino sentimento de erguer-se, mas naquela quase drenada essência, iniciou-se um contínuo e irreversível apodrecimento, que findaria somente com o caminhar desvirtuado e maquinalmente irreversível ao vale das sombras eternas e de padecer indizível.

O ex-empresário, bem sucedido e de posses quase desconhecidas, fora traído pelo sócio que, manipulava colaboradores de alto escalão, mascarava quantias e falsificava documentos, afastando, assim, os reais relatórios do sócio majoritário, entregue agora ao vício e uma vida com os dias contados. Esta traição fez com que um homem poderoso, influente e rico, se tornasse um maltrapilho sujo e recusado pela sociedade, que um dia o reverenciou.

Todos os dias, ao acordar, pensava num passado não muito distante. Lembrava da esposa, dos filhos, das festas, dos cães... E na meia embriaguez que sentia pela manhã, recordava um refrão de uma música que o filho mais jovem cantava freqüentemente, que dizia algo assim:

My face in the bottom of glass

Reflect the image of solitude,

in the alcohol that made drunk

for to deceive the depression.

Com estas palavras na mente, lavava o rosto, penteava o agora longo cabelo negro que se emaranhava com a barba também enorme, e dirigia-se ao bar que, como na música, encontraria o refúgio, a saída para aquela depressão que o sufocava, suprindo o peito de chagas permanentes e a alma de tormentos que o acompanhavam desde a última festa na suntuosa morada, dia que fora apunhalado pelas costas por sua mulher, e alvejado à queima roupa pelo sócio, jogando uma existência na lama sem qualquer chance de superação.

Uma determinada noite, após ter bebido o dia inteiro, chegou ao casebre trazido por dois estranhos. Fora jogado na cama. A ingestão de álcool ultrapassou os limites de seu corpo e, acometido de um coma, não amanheceria vivo. Faleceu sufocado com o próprio vômito, e a possível saída para os problemas deu sua prova de eficácia. O corpo foi encontrado quatro dias após a morte, não por terem sentido sua falta, e sim pelo pungente odor proveniente do casebre.

Foi enterrado como indigente, pois na comunidade onde vivera os últimos seis meses, ninguém tinha conhecimento de quem era o homem que não possuía passado, ou melhor, não queria tê-lo vivido.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 22/02/2008
Código do texto: T870896
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