A janela

Cofiava pausadamente os fios da barba que ornava a face jovial, embora sofrida. O calor escaldante do janeiro abaixo da linha do Equador fazia o suor, que corria incessante, umedecer tanto as mãos e os pés, quanto a imagem que o lançava a uma melancolia de um inverno não muito distante e não diferente do outono de folhas secas e páginas úmidas.Observava com os olhos dispersos, porém inertes, um transparente saco plástico que, dilacerado e visivelmente quebradiço, bailava a mercê do tempo e padecia no asfalto quente, falecendo como uma alma respeitosa aos caprichos Dele. O sol, longínquo impiedoso, evidenciava um negro fio de cabelo que amargamente deslizava pela parede de tom esperança claro, e que forma alguma retardava o sugar completo do desespero. N a superfície da alma transbordava uma brisa de pensamentos que sussurrava gritando aos seus ouvidos...

“Respeitei tudo o que se podia ser respeitado obedeci a tudo o que se podia ser obedecido mesmo assim não obtive em minha busca o que talvez em outras centenas de buscas não irei também conseguir... a tão almejada felicidade...”.

No chão, sob o tapete de nuances apreensivos, uma taça partida e uma mancha escarlate incitavam, sem sucesso, um súbito adormecer.

Tentou lembrar-se de um nome, mas a mente não mais respondia ao simples comando do coração, e a lucidez, escrava passiva, desfalecia-se em meio a desproporcionais e angustiantes sombras de um passado que, ora emergia ora dispersava. Com a visão agora gélida, pressionava os limites da janela, avistando um áspero crepúsculo em que, por entre as nuvens que pareciam sangrar, uma legião de fantoches disformes buscava uma utópica libertação.

A noite chegara. Como em muitas outras, esquecera de dormir. Nessas vigílias ele compreendia ao refletir, o quão ríspidas foram suas palavras, proferidas aqui e ali, no ontem e, certamente, proferiria num qualquer amanhã.

O peito fragmentava-se metodicamente. Sua alma buscava a dela e num pasmado transe, vislumbrava uma pequena parte do rosto que através da bem formada e vermelha boca, palavras se confundiam com as lágrimas, que ardentes, queimava a sua esperança.

“Será a sombra da indiferença ou a penumbra do orgulho teu que põe em minha mente um diminuto poder de alcance, retirando aos poucos tua existência da minha, somente, e tão somente por teus atos impensados e, de certa forma inconseqüentes?”.

Os questionamentos surgiam aos turbilhões, enquanto abaixava-se para apanhar a taça e seu fragmento. Tomou-a em mãos, e num descuido se feriu, gotejando outro escarlate no tapete. Lançou o objeto contra a parede num ímpeto de raiva. Arrependeu-se. Os pedaços brilhavam mais que seus olhos inundados, que além de enegrecidos, estilhaçavam também o coração.

Na visão cansada, embora atenta, a areia de uma ampulheta circulava toda a órbita, fazendo com que o corpo sentisse o peso de mais uma noite acordado. Levantou-se pesadamente da poltrona lançando-se à lâmina de luz que adentrava pela janela meio aberta. Abriu-a respirando toda a luminosidade e metade da alegria que se prostrava a sua frente; eram crianças a brincar nos quintais, trabalhadores a comemorar o último dia da semana, donas de casa a caminho da padaria, a bela moça que se espreguiçava sentada numa calçada de tijolos vermelhos, cães que ladravam sem porquê, pássaros (embora encarcerados) que cantavam harmoniosamente... A outra metade não veria certamente. Por tal certeza e por outras angústias, se fazia o padecer dos dias naquele quarto, que não adormecia nem tampouco se movia. O que abandonava somente a inércia era a alma, que nos segundos intermitentes voava a outro quarto, resplandecendo assim um sorriso quase enegrecido, candidato ao não mais existir.

Sete dias de claustro e penitência. Resolvera então ir buscá-la, ou simplesmente trazê-la. Força não possuía. O brio era uma mescla de decepção e reconhecimento, levando-o ao desespero de um fracasso premeditado. Pensou por horas, mas a coragem não se erguia de sua nova morada. Ensaiou um pedido, o sol se deixou nublar, e naquele dia não retornou, abrindo caminho a mais uma noite que arremedava o padecimento.

Sentia-se exausto. Por seis noites não dormira. Deitou-se na cama implorando ao sono; não surtiu efeito. Levantou-se e caminhou até a cozinha. Lá encontrou o sono que dele se esquivara por tempos. Tentou voltar à cama, mas não obteve sucesso; lançou-se, quase que moribundo, sob o tapete, aconchegando a cabeça já pesada próxima à mancha escarlate de vinho e sangue...

Naquela noite não esquecera de dormir, sonhou com anjos, nuvens e vastos campos protegidos divinamente por um límpido e calmo céu azul, porém, nessa noite, a imagem dela não lhe passara pela alma.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 22/02/2008
Código do texto: T870891
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.