Minha Gata Mariza
MINHA GATA MARIZA
Chovia e fazia muito frio naquela noite. Um vento gelado cortava o corpo como se fossem fios de aços penetrando a carne dos poucos passantes que se aventuravam a enfrentar o mau tempo. Molhado e tremendo de frio, eu seguia pela rua escura buscando chegar o mais rápido possível a minha casa. Caminhava a passos largos, louco para chegar ao meu destino, quando, de repente, vindo de um terreno baldio, ouvi um gato, ou melhor, um filhote recém-nascido miando desesperadamente. Não eram miados, mas sim, súplicas de um ser sem esperanças, abandonado a sua própria sorte, que pedia clemência. Um ser tão pequenino que, por isso mesmo, não conseguia compreender a imensa maldade da alma humana. Penalizado com o sofrimento daquele animalzinho, resolvi me aproximar. O pobre bichano não devia ter mais que uns 20 dias de nascido. Era uma gatinha, dessas que os veterinários chamam de sem raça definida e que os leigos batizaram de vira-lata, muito linda, apesar do estado em que se encontrava. A pobrezinha estava molhada, faminta e assustada. Quem poderia ter feito tamanha maldade contra uma criaturinha tão inocente e criada por Deus? A perversidade humana não tem limites, pensei comigo mesmo.
Foi então que tomei a decisão de redimir a humanidade daquele pecado. Resolvi levá-la comigo. Doravante, serei o seu amigo e protetor, disse-lhe baixinho ao ouvido. Ato contínuo, coloquei-a sob o meu casaco para aquecê-la e para demonstrar todo o meu afeto e todo o meu respeito pela vida, seja ela de que tipo for. Quem sabe, como forma inconsciente de lhe pedir desculpas pela maldade que fizeram com ela e de lhe dizer que nem todos os seres humanos eram tão insensíveis, tão perversos e tão cruéis como o seu antigo dono. Minha estratégia deu bom resultado, pois, se sentindo protegida, ela imediatamente adormeceu.
Quando chegamos em casa, logo preparei uma seringa de leite, já que a gatinha era tão pequenina que teria imensa dificuldade em tomá-lo em outro recipiente. Depois, arranjei uns panos velhos que ajeitei em forma de cama, onde a coloquei, tendo o cuidado de cobri-la bem, pois, como já disse, fazia muito frio naquela noite. Alimentada e aquecida, a gatinha pôde, finalmente, dormir em paz. Foi a primeira das muitas noites que passaríamos juntos.
Pela manhã, ao acordar, minha primeira providência foi levá-la ao veterinário. Felizmente, a gatinha gozava de boa saúde. Sem saber bem por que, dei-lhe o nome de Mariza. Acho que sempre quis ter uma filha e, se a tivesse tido, com certeza Mariza seria o seu nome.
Mariza passou a preencher a vida de um homem solitário. Era meiga, carinhosa e bastante traquina, como sabem ser os felinos. Adorava correr atrás de qualquer coisa em movimento, por isso, lhe dei, de presente, uma bolinha de gude, com a qual ela brincava o dia todo. À noitinha, quando eu retornava do trabalho, lá vinha ela miando e dengosamente se enroscando nas minhas pernas até que recebesse uns chameguinhos. Depois, ficava me seguindo por toda a casa como uma cachorrinha. Feliz, foi crescendo até tornar-se uma gata adulta, linda, soberba, magnífica. Mariza adorava a noite. Era boêmia, como sabem ser as gatas. Dormia durante o dia para farrear à noite. Fazia parte de seu cotidiano trocar o dia pela noite. Pela manhã, ao voltar da orgia, pulava para a minha cama e brindava-me com carícias que só terminavam quando, finalmente, eu acordava. Nesse momento, matreiramente, se aninhava aos pés da cama onde, depois de se ajeitar, dormia o sono dos justos. Mariza era um amor! Um exemplo para nós, seres humanos. Se homens e mulheres tivessem em seus corações um terço, apenas um terço, do amor, da dedicação e da gratidão que aquela gata possuía, o mundo seria maravilhoso, viveríamos num verdadeiro paraíso. O paraíso que Deus prometeu aos homens. Teríamos encontrado, na Terra, a felicidade que sempre buscamos e nunca a encontramos.
Um dia, ao acordar, fui surpreendido pelo olhar de Mariza repleto de ventura. Um olhar diferente. Havia um brilho de satisfação em seus olhos. Percebia-se que a felicidade estava morando naquela alma. Fiquei imaginando o que seria. A verdade surgiria mais tarde. Mariza, a minha pequena e mimada gatinha, ia ser mãe. Confesso que a idéia de tornar-me avô não me agradou muito. Súbito, comecei a imaginar o que faria com os seus filhotes, já que não era comum uma gata parir apenas um gatinho. E se nascesse meia dúzia? Como criá-los? Teria coragem de me desfazer deles? Fiquei apavorado diante de tal hipótese. Depois, mais tarde, cheguei a uma conclusão. Acontecesse o que acontecesse, tivesse ela seis ou doze gatinhos, não iria me desfazer de nenhum. Todos ficariam na mesma casa. Eu cuidaria de todos com o mesmo zelo que cuidei da gata-mãe.
Na expectativa do parto, fomos levando a vida. Mariza ia ao veterinário pelo menos uma vez por mês. Queria me certificar de que tudo correria bem. Minha gata continuava alegre e saudável. Sua gravidez foi maravilhosa. Naquela casa, antes sem graça e sem sol, havia, agora, vida e alegria. Havia Mariza. Graças a ela, havia paz e muita felicidade.
Certa manhã, ao despertar, tive uma bela surpresa. Colocados sobre o tapete do meu quarto, lá estavam três belos gatinhos. Dois machos e uma fêmea. Mariza fez questão de me apresentar a sua prole. Havia um quê de felicidade no seu semblante. Eu, por minha vez, não posso negar, fiquei felicíssimo com o acontecido. Orgulhosa, Mariza alimentava os seus bebês. A família aumentara. Agora, éramos, ao todo, cinco pessoas. O que mais pode um homem solitário como eu querer da vida? Dessa maneira, fomos vivendo em paz e em harmonia.
Uma noite, fui acordado por miados desesperados que partiam da garagem. Corri ao local, e o que vi me comoveu e comove até hoje, ao me lembrar. Mariza, a minha gatinha, lambia, desesperadamente, uma das suas crias, já, naquele instante, sem vida. Era a tentativa de uma mãe desesperada de devolver a vida ao seu filho querido. Nunca vou saber a causa da morte daquele lindo gatinho, mas as cenas futuras jamais sairão da minha cabeça, viva eu cem anos. Naquela noite, ficamos mais unidos do que nunca. Mariza não arredou o pé dali em nenhum momento. Sempre lambendo o seu filho e miando um miado de lamento, de tristeza e de perda. Era a personificação do sofrimento e da dor.
Ao amanhecer, resolvi providenciar o sepultamento. Escolhi a mais bela roseira do meu jardim para cavar, ali, a sepultura do pobre gatinho. Coloquei seu corpinho numa caixa de charutos, para que não ficasse em contato direto com a terra, e o depositei na cova aberta.
Depois, num último ato, encomendando a sua alma, rezei a São Francisco de Assis para que o gatinho fosse conduzido ao paraíso.
Mariza a tudo assistiu, sempre miando um miado saudoso, creio, agora, que um miado de despedida. Acabado o sepultamento, retirei-me, dirigindo-me para o interior da casa, ao contrário de Mariza, que teimou em permanecer ali, onde estava enterrado o seu filho. Não houve jeito de tirá-la daquele local.
À noite, ao retornar, uma surpresa me aguardava. Encontrei a minha gatinha com a sua cria. Mariza, não se conformando com a morte, desenterrou o filhote e continuou o seu trabalho. Lambia e miava numa tentativa inútil de devolver a vida àquele filho que se fora para sempre. Não agüentei. Dizem que homem não chora. Naquele momento, me debulhei em lágrimas. Abracei-me à minha gata e ao gatinho sem vida e chorei uma barbaridade. Mais tarde, sem que Mariza percebesse, o enterrei no quintal, ao lado de uma mangueira frondosa e dadivosa. Quanto a Mariza, nunca se conformou com a perda do bebezinho. Volta e meia, era encontrada ao lado da roseira miando um miado de tristeza e de saudades. Era, na verdade, uma verdadeira mãe. Daquelas que não esquecem, jamais, os seus filhos queridos.
Muitos anos depois, Mariza veio a falecer. Mas deixou comigo uma extensa prole. Hoje, vivo cercado por seus filhos, netos e bisnetos que continuo assistindo com muito amor e carinho. Há até uma gatinha igualzinha a ela nas cores, nas traquinagens e nos sentimentos. Eu a amo muito, mas que me desculpem todos aqueles que leram essa história. Ela não é minha gata Mariza. Mas não é, mesmo!