Ter?

Sentia-se como uma flor que, ao amanhecer, recebera toda a luz intensa e fortificante do sol, provendo-lhe energia e graça harmoniosa até que a tempestade, negra e desoladora, subtraísse suas folhas, extraísse suas pétalas e inundasse a terra, desprendendo sua raiz e levando-a pela correnteza insensível.

Parou em frente à antiga casa, que quase imperceptível era, em virtude das densas árvores que a circundavam, deixando apenas à vista uma placa enferrujada, presa por um arame farpado e de pintura fosca e castigada pela umidade.

Era ali, seus tormentos certamente findariam ao sair daquela edificação, que aparentava não suportar por muito tempo. A casa tinha uma aparência suja, de janelas negras e mofadas, e paredes que, de baixo para cima eram tomadas de um musgo verde que brotava das rachaduras. A calçada, que levava até a porta frontal era estreita, ladeada de pequenos arbustos e pedras coloridas, estas o único sinal de “vida” daquela sombria entrada. Olhou pensativa para a porta de entrada, que ficava protegida com uma espécie de umbral ampliado, e continuou caminhando e observando ao seu redor. Diminuiu os passos, e repentinamente estancou o caminhar. Em frente à porta de entrada suspirou, queria não mais fazê-lo, e por um instante pensou em tudo o que passaria se desistisse; pesou os prós e os contras, o futuro “com” e o futuro ‘sem’, a rejeição de um lado e a rejeição de outro, o ódio “dos” e a indiferença “do”; certeza tinha uma... Não seria mais a mesma, estaria para sempre condenada, ou pela lei de Deus ou pior, por sua consciência, que a atormentaria enquanto respirasse, tal qual o tormento no purgatório...

Eram quatro horas da tarde, seu horário era às cinco. Olhou novamente a imagem, que lhe causava arrepios, ao longe um canto de pássaro, que nunca havia ouvido, soava com uma sinfonia em sua mente transtornada, fazendo-a lembrar os tempos de criança... Dos banhos escondidos no lago atrás do morro, das aventuras na plantação de milho de Seu Pepe, nos amores inocentes, na imagem da avó cochilando na cadeira de balanço enquanto o avô martelava a cerca...

Enxugou as lágrimas e tocou o enegrecido sino de bronze que se localizava ao lado da porta frontal.

Voltou a tocar e nada. Quando ia tocar novamente, prometendo a si mesma que iria embora se ninguém aparecesse, uma velha senhora, de trajes claros e não muito limpos, e rosto enrugado surgiu. Era de baixa estatura, um pouco curvada e tinha lábios finos, pálidos e ressequidos. Os olhos, azuis e pequenos, traziam uma névoa dispersa que lhes dava feições de inúteis. Com uma das mãos arrumava o cabelo, grisalho e de pontas quebradiças, e com a outra, que apresentava uma enorme cicatriz, segurava um charuto, que mesmo sem brasa exalava um forte odor, que lembrava o cheiro do dia dois de novembro... Mas não poderia ser do charuto, era o cheiro da casa.

“Leila?”, questionou à senhora abrindo a porta um pouco mais. A jovem balançou a cabeça fazendo um sinal positivo. Um corredor em meia luz, de certa forma longo, precedia uma sala consideravelmente iluminada, onde uma outra jovem, de aparência infantil e semblante abatido, trazia nos olhos dois sulcos negros, impondo-lhe uma morbidez de falecida. Tinha sobre os joelhos uma bíblia, talvez o Novo Testamento, que com os dedos, finos e muito brancos transladava de linha a linha. Voltou os olhos para Leila, e em voz alta; (não muito alta, pois nem para tanto apresentava força), leu este trecho:

“Apareceu no céu um sinal extraordinário: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos seus pés em uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. Ela estava grávida e gritava de dor, pois estava para dar à luz. O dragão colocou-se diante da mulher que estava para dar à luz, para devorar o seu filho no momento em que nascesse”.

Ao findar a passagem, a jovem calou-se, baixou a cabeça e continuou transladando os dedos sobre a bíblia.

Leila sentou-se em uma das cadeiras de madeira, que rangiam a cada suspirar das moças. Tinham, não diferente da casa, uma aparência sombria em virtude dos desenhos entalhados, que, aparentemente nada significavam, mas muito impressionavam.

A velha senhora apareceu e fitou pausadamente as duas jovens. Enxugava o suor do rosto com um lenço xadrez, que mal se distinguiam as cores que se cruzavam. Olhou para Leila com os olhos sôfregos, parecia querer dizer algo, mas quem recebeu a ordem de entrada foi Clara, a outra moça. Antes de a jovem dirigir-se a sala, com a bíblia na mão; um homem, já nos seus quarenta, quarenta e cinco anos surgiu, retirou as luvas, sujas de sangue, e as jogou num caixote preto, desses que se levam frutas, que servia de lixeira. Leila sentira um leve enjôo, mas conteve-se. Clara, pálida, magra e trêmula adentrou na sala, que dentre todos os cômodos visíveis da casa, era o único que apresentava paredes brancas e tinha uma iluminação plena.

Quarenta minutos se passaram. Leila permanecia sentada e imóvel, maquinando sobre seu futuro. Quinze minutos mais se foram, até que, inundado de suor o homem apareceu novamente na sala de espera, com um charuto apagado num dos cantos da boca e as mãos, já sem luvas, batiam-se fortemente, como se estivesse dando os parabéns a algo ou alguém. A velha senhora saiu logo depois, com Clara apoiada nos ombros. A jovem tinha os olhos parados, os cabelos gotejavam, e as pernas, além de completamente cobertas de um espesso vermelho, estavam trêmulas e consideravelmente rastejantes.

A velha senhora, com as roupas manchadas, retornara, bastante apreensiva, dez minutos após sua passagem pela sala em que estava Leila. Não emitiu uma palavra, passou velozmente pela sala de espera e sumiu na escuridão de um corredor oposto ao da entrada. Apenas um som de sirene se ouvia distanciar progressivamente.

O senhor aparecera novamente, e com a voz grave, bradava incessante pela velha senhora, batendo palmas e olhando perdidamente em direções alternadas. Leila, como estátua, aguardava sua vez.

A velha surgiu, o homem já se encontrava no interior da sala de paredes brancas. A porta se fechou. Leila, atenta e inerte, buscava entender a discussão que lá dentro se formava. Eram gritos, murros nas paredes, chutes na porta e muitos “sim senhor”. De tudo o que foi urrado, pouco se entendeu, ou praticamente nada se discerniu, de concreto somente algumas frases soltas que, aparentemente, diziam:

“Eles não mais... não mais... não irão mais... não adianta, não novamente... é a terceira em cinco... torna-se necessário um tempo... uma viagem até as coisas se limparem... estamos gastando... pelo silêncio e pelos documentos... não irão mais... não mais... é tempo necessário... três em cinco... inconcebível... não mais...”.

O sangue de Leila gelou, suas pernas não lhe obedeciam, enquanto os olhos trancavam a porta, que parecia se mover a cada palavra que vinha do interior da sala. A fechadura, enferrujada e banhada de um vermelho coagulado deu sinal, e com ela o ranger das dobradiças que, após tudo o que fora ouvido, produzia um som mais mórbido do que supostamente se imagina.

A senhora, com os passos lentos e a cabeça baixa aproximou-se de Leila, tinha a respiração pausada, não calma, e apresentava uma face preocupada. Parou em frente a jovem, ateve-se por um momento a observá-la, e de súbito perguntou: “Quantos meses?”. Um silêncio torturante se fez; a jovem e a velha senhora se olharam, uma de vistas vívidas e brilhantes, outra de olhos inertes e opacos. Nada foi proferido por um longo tempo, ouviam-se apenas os ruídos da noite que iniciava, deixando aquele silêncio tão mudo quanto a morte e tão surdo quanto a vida...

O homem gritou de dentro da sala de paredes brancas; a velha respondeu no mesmo tom com um “sim senhor”. Tudo estava pronto para o serviço, não havia tempo para “caprichos de donzela”.

Leila levantou-se, fitou a velha senhora com piedade odiosa e dirigiu-se à porta de saída, respirando profundamente pelo corredor. A mulher permaneceu inerte. O homem, encostado na porta da sala de paredes brancas com um charuto aceso em uma das mãos, abriu um sorriso reprovador e entrou novamente na sala.

A jovem encontrava-se no portão. Voltou-se, observou a casa, suas densas árvores e a placa que, em letras maiúsculas, alertava: “LIBERTAMOS VOCÊ DOS MALES DO MUNDO”. Achou aquilo engraçado, porém sarcástico, mas contagiada pela alegria de continuar grávida, sorriu como sorria outrora. Enquanto a velha, no interior da casa, arrumava o cabelo dizendo: “Graças a Deus, o expediente acabou”.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 20/02/2008
Código do texto: T868303
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