O nó na garganta que alivia a dor

Havia saído do “cabide” há três dias. O sol brilhava tanto quanto ardia, mas nem assim, ele sequer movia um músculo a procura de sombra ou de um lugar mais agradável em se tratando de temperatura. Ao longe, os murmúrios dos mais tímidos e os gritos dos zombadores obedeciam o mesmo entendimento para o motivo que levara Leafar a permanecer sob o sol escaldante que parecia derreter o cérebro, ou no mínimo, o cozinhava.

Leafar era o detento mais novo do Presídio Estadual General Clóvis Albuquerque. Fora acusado e condenado por assassinato e ocultação de cadáver, com todos os votos do júri popular. Sua sentença, algo em torno de oitenta anos, foi motivo de festa para a família da vítima e da comunidade. Um crime bárbaro, com requintes de crueldade e sem precedentes. Leafar, por uma discussão banal, teria desferido quarenta e nove golpes de faca no taxista João Paulo Brecci e enterrado o corpo em um terreno baldio. A arma do crime nunca fora encontrada. Leafar alegava inocência; “não estava na cidade na noite do crime”, afirmava ele. Os familiares da vítima relatavam o desentendimento dos dois, dias antes da tragédia. Segundo eles, premeditado, já que Leafar prometera matar o taxista. Todos que presenciaram a discussão, ouviram tal promessa.

Com base na discussão e na fala do acusado, juiz e júri não tiveram dúvida sobre a sentença. Não bastando tais evidências, o advogado de Leafar não fizera esforço para pôr em cheque os depoimentos, sendo estes vagos e alicerçados apenas na troca de insultos dos dois homens. Patrício Cicrutti, o advogado, omitira um ponto crucial, e que deveria ser posto ao conhecimento de todos, buscando a absolvição de seu cliente.

Leafar Segrob era descendente de africanos, e viera para a colônia italiana situada no centro do estado por conta de negócios. Todos, sem exceções, tinham aversão pelo estranho, herança de seus ancestrais; não entendiam o que um homem daquele tipo fazia ali. O fato de Leafar ser negro, talvez não fosse o motivo do sentimento de repulsa, mas sim o fato dele possuir na região muitos bens, deixados por um ex-patrão de seu falecido pai, como pagamento por anos de devoção e árduo trabalho de quase duas gerações da família Segrob.

Leafar estava no presídio há aproximadamente um mês e, dentro deste período, duas semanas recluso no “cabide”, em virtude de má conduta e briga com outro detento. O “cabide”, nada mais era que quatro paredes de concreto com uma minúscula abertura na parte inferior da porta, por onde era servida a refeição - uma vez por dia -, e media uns quarenta centímetros quadrados, ou seja, para dormir, somente de pé. As duas semanas de trevas e ar restrito, faziam com que Leafar Segrob permanecesse encostado em um das traves da quadra de futebol que erguia um ar escaldante. O ex-habitante do “cabide” tinha na face um sorriso largo e um piscar de olhos pausado e prazeroso. Através da fumaça do cigarro e do calor emanado do piso da quadra, ele vislumbrava imagens distorcidas do ontem e do amanhã. A cada fechar e abrir das pálpebras, enxergava distintos retratos. No ontem, os campos verdes e a harmonia, mesclavam-se aos gritos de dor e as figuras macabras, que açoitavam condenados, manchando de sangue suas brancas vestes. Em outro momento do delírio, no amanhã, uma devastada região enegrecida, emoldurava lagos de fogo e enxofre, que queimava eternamente as asas dos anjos e as almas puras, exalando um forte odor e causando um irritante soar de trombetas.

A sirene do presídio tocara, anunciando o fim do horário de visitas. Leafar sacudiu a cabeça e voltou à realidade. Olhou rapidamente ao seu redor. Ninguém o visitava, mas ainda permanecia vivo. Sentia um enorme rancor durante esses períodos. Encontrava-se perdido, abandonado e entregue a toda a má sorte.

Retornou para a cela pior que antes. Ao serem cerradas todas as portas, recebeu de um dos guardas uma correspondência. Toda a angústia parecia sumir de seu peito ao simples fato de avistar o branco envelope. Sorriu, como há tempos não sorria. Tomou-a em mãos e buscou o remetente. Nada constava, mas mesmo assim permaneceu alegre. Abriu o envelope, desdobrou as folhas amareladas de papel barato e pautado, apanhou os óculos e, sentado na cama desatou a ler:

“Não existe data, pois não existe tempo. Não existe nome, pois não existe vida. Existe sim o sofrimento. Existe sim a tortura.

Amaldiçoado sejas tu, criatura insana de alma pútrida. Pagarás por cada golpe, por cada fenda aberta e por cada gota de sangue derramada. O mal por ti construído jamais será desfeito. Mas tenha certeza, que a edificação por ti concluída, será mais que tua ruína. A cada nascer e a cada pôr do sol, uma parte da linha de tua maldita existência será apagada, assim como, a chama impura de tua alma aos poucos se apagará...

Leafar não findou a leitura. As luzes se apagaram e o toque de recolher se dera. Ainda sentado na cama, ele buscava forças para apagar da alma as palavras proferidas na mórbida carta. Lutou contra sua consciência o quanto pôde, mas o sono não tardou, o corpo e a mente renderam-se ao cansaço e ao choque que levara.

Acordou de sobressalto com a sirene. Procurou a carta para terminar a leitura; encontrou-a amassada ao chão. Passou rapidamente os olhos e transformou-a em pedaços diminutos, querendo que a maldição ali contida se fragmentasse também. O restante da semana fora de pensamentos. Gastava quase todo o dia tentando encontrar respostas para as afirmações escritas na correspondência, como se fosse fácil responder afirmações; era inútil. Não mais saia da cela. Criou-se uma paranóia em torno das frases, embora tivera rasgado a carta, tinha todo o seu conteúdo girando na cabeça, cada vez mais temerosa.

Refugiou-se dentro de si. Esquecera as horas; pois não havia tempo. Não tinha um nome; pois não havia vida. Abandonou os banhos de sol e repugnava o ar da noite. Parou de fumar, pois a chama aos poucos se apagaria, A loucura plena era apenas uma simples questão de tempo; talvez morresse antes em virtude da quase ausência de alimentação; os guardas já não mais queriam trazer a comida até a cela, “isso era o cúmulo”, todos os outros detentos almoçavam e jantavam no refeitório.

Completara-se duas semanas desde que a carta fora entregue. Leafar não conseguia mais levantar-se da cama. Sentia dores fortes no peito e apenas sussurrava, de quão grande era sua fraqueza.

A sirene tocara informando o horário do banho de sol. No pátio do presídio, a enorme movimentação de detentos colocava quase todos os guardas em alerta. Na cela de Leafar Segrob, um homem quase falecido e um suposto entregador de correspondência concluem uma silenciosa sentença, selada com um nó que alivia a dor.

Em um interrogatório de rotina, numa sala reservada do Presídio Estadual General Clóvis Albuquerque, o real assassino do taxista João Paulo Brecci confessa o crime.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 20/02/2008
Código do texto: T868282
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.