Mendigo de almas

Com sistemática cautela estendeu o lençol. Dobrou as cobertas e as guardou junto ao travesseiro. A tímida e pálida luz do lampião fora apagada. Abriu silenciosamente a porta da antiga e abandonada dependência que um dia servira de depósito de ferramentas ao falecido proprietário. Em treva plena, apalpava as paredes e arrastava os pés sob os tapetes, buscando esquivar-se de mesas, cadeiras e balcões. Parou um instante. Agora, com os olhos bem abertos e as pupilas dilatadas, a escuridão já não era tão intensa, possibilitando uma turva visão do interior da velha casa, que fora sua morada pelo exato tempo de seis meses, seis dias e seis horas. Na observação da sala encontrava significado para todo e qualquer objeto, vislumbrando momentos que ali passara. O enxovalhado saco de vestes rotas estava a seus pés, tomou-o às costas e dirigiu-se à porta de saída. Passava diante do grande espelho que ornava o corredor. Com a cabeça imóvel, lançou um olhar ao espelho, direcionando rapidamente para frente sua visão. Na face um sorriso cínico e entreaberto de tom sarcástico, repugnante. Suavemente virou a chave, fechou a porta e continuou a caminhar com passos leves pelo jardim que cuidara durante o tempo em que ali permaneceu.

Sua saída, até então, não causara alarde. Prostrou-se em frente ao portão, soltou o volume que levava e puxou categoricamente o portão, mesmo assim o rolar das enferrujadas roldanas liberou seu aviso, semelhante ao ranger de dentes dos condenados no mundo do sofrimento.

D. Angela acordou assustada, procurava a bengala ao lado da cama com desespero, não entendia a pavorosa sensação e o cortante barulho do estilhaçar de vidro que ouvira. Levou a mão ao criado-mudo, apanhou o copo com água e bebeu ofegante. As luzes não acendera, não havia necessidade, D. Angela vivia na escuridão; algo em torno de treze anos. Após tanto tempo, conhecia cada canto da casa, e além da bengala não necessitava de ajuda para se locomover pelos cômodos.

A velha senhora vivia sozinha há muito tempo. Quando Vítor, seu marido, faleceu, ela encontrou-se desamparada, já que os dois filhos que tiveram, haviam desaparecido antes da morte do pai. Raul e Luiz, com vinte e dois e vinte anos de idade respectivamente, saíram uma noite para uma festa e não mais retornaram.

Nos primeiros anos que sucederam a morte de Vítor, por razões desconhecidas, os vizinhos auxiliavam D. Angela nos afazeres domésticos. Com o passar do tempo já não mais precisava da ajuda da vizinhança. Sua cegueira deu-se um dia antes do marido falecer; sentiu uma dor no peito, as vistas escureceram e desmaiou. Quando retomou a consciência não enxergava mais. Os lindos olhos negros não perderam suas feições, somente não mais podiam desfrutar das maravilhas do mundo da visão. A areia do tempo escoava rapidamente, e cada dia que passava a solidão debilitava ainda mais a pobre senhora, que assim como a areia do tempo, sentia sua vida também se escoar.

Era um sábado cinza, pesado e sufocante. Passava do meio-dia quando um bater de palmas a frente da casa chamou a atenção de D. Angela, que vagarosamente dirigiu-se até o estalar de mãos que não cessara desde o momento inicial. Ao aproximar-se, a senhora identificou o motivo das palmas como um mendigo. Exalava um forte odor e transmitia um sentimento de vazio.

Tinha os cabelos longos e oleosos, repleto de pontas, barba por fazer, dentes quase enegrecidos. Um corpo magro, de braços e pernas desproporcionais em virtude do tronco quase esquelético. Vestia trapos sujos, umedecidos pela garoa que se fazia incessante. Trazia nas mãos um saco de linhagem tão sujo, ou mais que o farrapo humano que o carregava. A imagem da degradação apresentava-se naquele homem que pedia comida em troca de algum trabalho; insistia que se fizesse a troca, não queria esmolas, e sim ganhar o pão. O cansado e carente coração de D. Angela chorou. Fê-lo entrar, deu-lhe de comer, conversaram sobre assuntos mil. D. Angela espantou-se com a sabedoria do pobre homem, não tinha apenas conhecimento de mundo e sofrimento, mas também de ciências diversas e religião. Chamava-se Lúcio, o resto não fazia idéia. Após fartar-se, indagou sobre o trabalho. A atenciosa senhora hesitava enquanto ele insistia. Chegaram a um acordo tempos depois. Lúcio iria aparar a grama e limpar o jardim.

Eram cinco horas da tarde. Trabalho findado, o maltrapilho apanhou suas coisas e foi despedir-se. D. Angela estava sentada no sofá da sala; ouviu então as palavras de adeus e os agradecimentos; não se sabe o que realmente passou pelo coração e pela mente da velha senhora em pedir ao homem que esperasse. Ele parou, aguardou a senhora que se movia lentamente até ele batendo a bengala contra a parede para situar-se. O rosto de espanto do farrapo fizera-se pelas palavras de D. Angela pedindo que ficasse um tempo, ajudando-a e renovando suas forças para uma nova e longa jornada.

No início, Lúcio dormia na garagem e almoçava na varanda. Cuidava do jardim, fazia reparos e as compras da casa; bem como, tinha a responsabilidade de cumprir as ordens da agora patroa, D. Angela. Um mês e alguns dias depois daquele sábado, o mendigo de antes, ganhara um aposento no interior da casa, com cama, guarda-roupas, criado-mudo e até um lampião para suas leituras noturnas.

O tempo foi passando e passando foi tempo. Todos se admiravam com a alegria radiante da triste e fechada D. Angela de outrora. Mesmo os que não a conheciam enxergavam o brilho que envolvia todo o corpo, castigado pelo sofrimento, emanar uma luz antes nunca vista em ser humano qualquer. Salvo os olhos que empalideciam dia a dia, tornando-se opacos e cinza como pedras de uma caverna, que nem o calor do sol ou o frescor da brisa conhecem.

Lúcio permanecia com suas tarefas; D. Angela continuava alegre e radiante, mas com os olhos cada vez mais vazios e pálidos.

Certa noite, Lúcio já recolhido em seus aposentos abriu um estranho caderno que tirara do velho e sujo saco de linhagem; folheou vagarosamente até chegar ao que parecia ser um calendário, o qual tinha os dias que se foram marcados com um risco vermelho. Tomou a pena e o tinteiro e iniciou uma contagem. Ao término, chegou ao número de seis meses e seis dias. Tinhas agora as mãos comprimidas ao peito. Fechou os olhos sussurrando algo e, erguendo os dedos um a um, parou quando o sexto dedo fora levantado. De súbito, mas vagarosamente, arrumou seus pertences e o quarto. Apagou o lampião e dirigiu-se à porta de saída. Observou tudo detalhadamente, exceto o espelho que olhou de relance. Rangeu o portão, cerrou-o bruscamente e iniciou outra jornada.

D. Angela, acordou horrorizada com o estilhaçar de vidros; apanhou a bengala e após alguns goles d’água dirigiu-se à sala que precedia o corredor da saída. Ao pisar nos pedaços do espelho, sentiu o corpo esvaziar-se. Soltou a bengala. Durante um pavoroso clarão lançou o olhar aos fragmentos do espelho, o quais refletiram sua face e seu corpo de quando jovem. Sorriu, as trevas reinaram e jaz ali, caída e tétrica, uma existência sem alma.

Gimi Ramos
Enviado por Gimi Ramos em 20/02/2008
Código do texto: T868280
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