QUANDO OS ANJOS VOLTAM PRO CÉU
Eu conheci um cara. Nada demais. Na verdade ele me conheceu. Veio com uma história de que eu parecia uma atriz de um filme russo. Russo não. Um filme que se passava na Geórgia, “uma ex-república soviética”. Eu sei onde fica a Geórgia. Eu sou russa. Loira, alta, olhos claros. Não sou nenhuma Sharapova, longe disso, mas ele me viu e me quis. Se bem que no estado em que ele estava, qualquer moça loira com aquela frase fluorescente escrita na camiseta – “Voulez-vous coucher avec moi ce soir?” – chamaria atenção. Eu conversei com ele. Afinal, há quanto tempo eu não conversava com um homem? Onze anos naquele colégio interno. Vendo mulher pra todo lado. Homem, assim, mais de três da madrugada de uma sexta-feira aparentemente sem sal, devia ter algum motivo. Bêbado. É verdade, ele estava bêbado. Mas ele sabia onde era a Geórgia. E veio querer falar russo comigo. Só sabia uma frase em russo. Ya govoryu po-russkiy. Achei meigo. Não pelo fato de ele estar bêbado nem de ele saber dizer aquilo em russo, nem a barba por fazer, nem o jeito de tentar se equilibrar nas próprias pernas, mas a abordagem. Original, no mínimo. Eu me apaixonaria por ele. Talvez, durante aquele tempo em que conversamos, eu estivesse perdidamente apaixonada por ele. Principalmente na hora em que ele perguntou meu telefone. O telefone e depois o nome. Pouco importava meu nome naquela hora, o que importava era a certeza de falar comigo de novo, e ele concentrou todos os seus pensamentos confundidos pelo álcool nesse objetivo:
— E o teu nome?
— Asia.
— Como escreve?
— A-s-i-a, que nem o continente.
— Ah!
Desde que Otar partiu é o nome do filme russo. Aliás, da Geórgia.
Depois descobri que o filme realmente se passava na Geórgia, mas era uma produção francesa. E a atriz com quem ele me achara parecida era a Dinara Drukarova, que fez o papel da Ada. Nada a ver comigo. Hoje eu entendo que ele tinha que falar comigo a qualquer custo aquela noite, e a primeira coisa que veio à mente dele foi esse filme. Mas ele parecia tão sincero, tão verdadeiro, como se fossem aquelas as últimas palavras da sua vida, e eu a última pessoa para quem ele as dirigia. As minhas amigas estavam custando a voltar, pensei. O problema de estudar num colégio só de mulheres é que se leva uma eternidade pra voltar a ter amigos homens. E eu não sei bem se aquele moço bêbado à minha frente, com uma gola pólo verde e uma bermuda suja de vinho queria ser meu amigo. De qualquer modo, eu queria pegar num homem, sentir aquela pele mais áspera que a minha suando perto de mim. Porque aos oito uma menina não quer saber de meninos. E se dos oito aos 18 uma mulher que só vê mulher corre até um risco de nunca chegar a pensar em homens. E, fatalmente, acabei me envolvendo. Quando eu e minhas amigas nos escondíamos nas árvores mais distantes do pátio para fumar escondido, assim, lá pelos nossos 14 anos, aquela vontade transgressora da adolescência reprimida pelos regulamentos nos levava ao extremo. Meu primeiro beijo foi com uma menina.
Naiara.
Linda. Branquinha, cabelos negros. Hermeticamente negros. Uns lábios vermelhos. Chamativos. Mas só percebi tudo isso depois desse beijo. Uma vez, caí, ralei o joelho, e ela veio correndo assoprar minha perna recém-ferida. Ela ajeitou o cabelo para não encostar no meu joelho, levantou um pouco a cabeça – seus olhos pareciam fechados – fez um biquinho para assoprar, e eu me dizia apaixonada. É assim que as pessoas se apaixonam, quando uma só imagem parece a imagem mais bela e inesquecível da sua vida, mesmo que a vida que começa naquele instante termine instantes depois. Nunca vou esquecer essa imagem e o que ela acarretava. Meu primeiro amor foi uma menina. Mas o tempo dela no colégio terminou antes do meu. E nunca mais fui àquela árvore longe do pátio. E também nunca mais quis outra menina que não fosse a Naiara. E nunca mais fumei.
Então, agora, com um homem sentado ao meu lado, esqueci das minhas amigas e segurei a sua mão quando ele a estendeu me dizendo algo em francês se levantando do banquinho da carrocinha de cachorro quente. Acho que ele estava lendo a frase da minha camiseta. Mas nem ouvi, só senti e segui com ele pra onde não quis saber. Ele parecia querer voar. A gente foi andando devagar sem rumo definido. Começou a chuviscar. Ele me disse que ficava triste quando chovia, porque nunca estava com quem ele queria estar, mas que agora ele esperava não ficar triste. A Naiara me dizia exatamente isso, que na chuva era pra se estar com quem se queria estar, se não, pra quê a chuva? Ele parou de andar e me olhou sério, como se estivesse pedindo pra ser cuidado. Nunca gostei disso, sempre fui muito egoísta para cuidar de alguém. Acho que porque eu nunca fui cuidada. Passei meus quatro primeiros anos de vida de casa em casa dos meus tios e de amigos dos meus pais em cada canto daquela Rússia fria prestes a explodir com aquela baboseira de socialismo. Até que eles conseguiram me mandar pro Brasil, junto com um casal de amigos da minha mãe, que me criaram até os onze, até terem a conveniente idéia de me mandar para o colégio interno. E agora que saí do colégio, tudo que encontrei foi uma senhora de 50 anos – frustrada porque o marido a deixou por outra mais jovem e menos monótona –, uma poupança relativamente gorda para me garantir a sobrevida pelos próximos dez, quinze anos e um gato siamês que só come a ração se ela estiver em cima da mesa da sala. Dos meus pais já nem quis mais saber, preferi enterrá-los no cemitério da lembrança.
Mas decidi não fazer o mesmo com aquele moço e o abracei. A chuva parou, o Sol começava a despontar. Não o beijei. Também porque ele não tentou me beijar, e pelo menos isso eu sabia sobre os homens: eles têm que se aventurar na conquista, enquanto o que nos resta, às mulheres, é decidir-se ou não pela entrega. E naquele momento eu queria sentir carinho por alguém. Porque, pensando bem, nem com a Naiara eu tivera carinho. Não no sentido fraternal, maternal, nossos únicos carinhos eram bem mais frenéticos e tinham um intuito. Com ele não, era aquele carinho que você respira fundo e tenta achar uma posição para não deixar nenhum pedacinho do corpo do outro desamparado pelo seu, nenhum grama da alma desaconchegada. Nenhum fio da sua roupa molhada eu poderia deixar descoberto. A Naiara, durante nossas trocas de carinho, nunca estava vestida. E do corpo dela, do que eu me lembrava mais nitidamente eram seus mamilos rosadinhos pouco salientes. Lindos, mas agora distantes. O telefone dele tocou, e eu nem quis pensar quem poderia estar ligando àquela hora. Ele se desvencilhou delicadamente dos meus braços e se afastou um pouco, indo mais para o meio da rua. Ele me olhou tão terno e, como os anjos voltam para o céu quando amanhece, um Vectra desgovernado o atropelou violentamente, assim que eu avistei minhas amigas, já meio desesperadas pela minha demora.