A INVENÇÃO DO FIM
Não é de sempre esse negócio de morrer. Houve uma época em que tudo era eterno. O tempo, as palavras, as pessoas, o amor, tudo. Nada morria, nada sequer envelhecia. O mundo era infinito, mas ninguém se atrevia a desbravá-lo, porque ninguém tinha certeza de sua infinitude, e aí seria um tédio andar sempre pelos mesmos lugares, sabendo que nunca iam descobrir um lugar novo. Melhor seria a eterna expectativa de encontrar alguma terra nova. Ninguém tinha medo de morrer, pois a morte não conhecia este mundo ainda, o grande terror das pessoas era que um dia ficassem entediadas, ociosas. Elas nunca suportariam isso, e esse medo era o que movia a humanidade. Por causa dele, ninguém tinha pressa, pra que antes que uma coisa terminasse de ser feita, já houvesse outra em mente.
Ninguém tinha filhos. As pessoas simplesmente surgiam de algum lugar entre o céu e o chão, quando Deus sentia que o tédio poderia chegar, assim se dizia. Não havia a dor. Tampouco o prazer, pois essas sensações são efêmeras demais para um mundo em que tudo era pra sempre. Existia, sim, o amor, mas não existia a certeza, porque esta limitava o sentimento, e nessa época nada tinha limite, então, mesmo sendo eterno o tempo, o amor não unia as pessoas, pois as escolhas que elas faziam tinham que ser eternas, que nem o amor, e para fazer escolhas é preciso ter certeza. Então o que restava era uma dúvida imortal. Não existia a paz, existia a mesmice, e uma sensação, esta sim eterna, de que algo precisava mudar, mas pra que se manifestar, se, por serem infindas, todas as coisas pareciam tão imutáveis?
Mas, claro, sempre há um bravo homem que, inconformado, tenta mudar as coisas. E este homem, já aborrecido de fazer tudo tão devagar, começou a correr, e quando chegou à beira de um rio, mergulhou e começou a nadar, até que encontrou o mar. Sentiu seus olhos arderem, e pela primeira vez na história da humanidade, alguém sentiu dor. Ele não entendia muito bem o que era aquilo, mas logo passou, e à próxima sensação ele deu o nome de alívio. E à próxima, felicidade. Ele voltou à aldeia onde vivia, contou a todos o que sentira, mas foi inútil, ninguém lhe dera ouvidos, mas também ninguém o dissera louco, porque por um momento os loucos têm razão. Ele, a partir de então, ia até o mar todos os dias, e no final de cada um desses dias, depois de experimentar todas aquelas sensações, outra não tão efêmera tomava todo seu corpo. Era o cansaço. Ao final de uma semana, este homem, antes que qualquer outro sobre este chão, sentiu sono. Ele se deitou à sombra de uma macieira e adormeceu. E sonhou. Nem pensou em contar a alguém sobre seu sonho, pois provavelmente ninguém acreditaria nele. E também porque, no começo, não sabia ao certo onde terminava o sonho e começava a realidade. Então, sem poder contar a ninguém sobre todas aquelas novas sensações que experimentava, inventou a solidão.
Doía.
E pra dor da solidão o alívio custa mais a chegar.
Uma manhã, na praia, sentindo o sol queimar as costas, porque é isso que acontece quando se fica muito tempo exposto a ele, diria um poeta séculos além, ele avistou uma mulher ao longe. Foi até ela, que chorava. Ele não sabia o que significavam aquelas pequenas convulsões. Passou a mão no rosto dela, levou o dedo à boca e perguntou, apontando para o mar:
— Isso tudo veio de você?
Ela não respondeu.
Ele nunca vira uma lágrima na vida, porque nenhuma tristeza pode ser eterna. Então, naquela manhã, naquela praia, aquele casal, antes que qualquer casal pudesse existir como tal, inventou a paixão. Tiveram medo, mas não medo do tédio, da monotonia, era um medo novo, medo do que um dia significaria “fim”.
Ela contou que descobrira a dor e o alívio também no mar, contou que as pessoas nunca a ouviram e que aquela rejeição fazia brotar nela aqueles pedacinhos de mar. Ele inventou o consolo. Ela, a gratidão. E eles dois, juntos, a ansiedade, daquele tipo que sobe pelo esôfago quando olhamos para o relógio e nosso amor ainda não chegou. Encontravam-se todos os dias, na praia, e, óbvio, o medo daquilo não existir mais era cada vez maior. A eternidade das coisas não os acalmava.
Construíram uma casa perto do mar. Ela achava estranha a sensação da noite, quando olhava pra ele, e um turbilhão quente subia-lhe por todo corpo, chacoalhando sua pele e eriçando suas vontades. Ela sofria. Até que, numa madrugada, ela acordou, suada, olhou pra ele e sorriu, pois sabia, só pelo fato de os olhos do seu homem estarem abertos, que aquelas sensações também a ele angustiavam. Assim nasceu o beijo, e, do beijo, os dois descobriram cada imperfeição do corpo do outro.
Os dias amanheciam, um após o outro, infinitamente, o mar vinha, passava um tempo e recuava, as dunas passeavam pelos litorais, o vento esfriava, a chuva regava tudo por um tempo e depois ia embora, as flores desabotoavam para se fechar tempos depois, tudo num ciclo eterno, típico de um mundo em que nada morria, nada sequer envelhecia.
Nada.
Nada até que ele notou na pele dela uma imperfeição diferente, que se acentuava a cada sorriso. Primaveras depois percebeu que seu cabelo começava a pratear e que se cansava cada vez antes do ponto em que se cansara mês passado. Numa noite sem lua, tivera um sonho ruim. Sonhou com uma mulher cuja pele enrugada parecia que ia se quebrar a qualquer momento. Ela, no sonho, apontava pro Sol, que se punha e renascia a todo momento, num claro-escuro infinito, e depois apontava pra ele, que ia enrugando a pele até ficar que nem a mulher, depois desaparecia e reaparecia, minúsculo, crescia, enrugava e desaparecia, formando uma cadeia eterna. Acordou com medo, porque a mulher enrugada ainda teve tempo de dizer:
— Ela carrega seu fim.
Ele acordou com um sentimento lhe atormentando e suplicou a todos os deuses que conhecia que fizessem aquele sentimento se dissipar. Era o desespero. Como poderia logo a mulher que ele encontrou para passar a eternidade ao lado ser justamente a mulher que poria fim a si?
Meses depois, a mulher enrugada novamente apareceu e contou que ele teria que fazer uma escolha imediatamente, porque sua mulher, em breve, colocaria no mundo uma nova vida, uma vida que ele iria ensinar a caminhar e a fazer todas as coisas que se faz por aqui. E tudo isso seria muito prazeroso, ele se sentiria feliz, satisfeito, mas um dia teria que se despedir de todas as pessoas e coisas que conhecia, e a isso a velha deu o nome de morte. Porém ele tinha outra opção. Poderia voltar pro lugar de onde viera, aquém do rio, e viver eternamente, sem experimentar as efemeridades da vida. Quando acordou, contemplou sua mulher, que dormia, acariciou seu ventre, já bem avantajado, foi caminhar na praia, sentiu o calor do sol e o frescor do vento, o som das folhas das palmeiras e voltou pra casa. Ela ainda dormia. Deitou-se ao lado da mulher novamente, e ela suspirou acordando. Ele fechou os olhos, sentiu o coração acelerar, abraçou forte a mulher e, finalmente, aquele desespero se foi. Ele inventou a paz.