Caleidoscópio

Olhou para o relógio enquanto procurava um cigarro por entre as pilhas de maltrapilhos de sua vida. Os ponteiros marcavam duas da manhã. Fez a conta de somar mais uma hora, era tempo de horário de verão. Três da madrugada. Acendeu o cigarro, deu dois grandes tragos. Sentou de novo no sofá, amarelo manga, como um filme que gostava. Ele lembrou que era ela quem havia escolhido a cor dos móveis, todas as nuances que o cercavam. Não combinava com nada na sala de 20 metros quadrados. Com as cortinas estampadas em todos os azuis do mundo, o tapete xadrez, o baú laranja que guardava seus albuns de fotografias. A lua derramava uma claridade sorumbática que, em movimento, esculpia uma linha que começava pela brecha entre as cortinas e agora cortava uma de suas pernas ao meio. Cuidadosamente espalhados pelo chão os porta retratos estampavam a fúnebre felicidade de um casal, mas na estante de mogno - pintada à mão por ela em cores cítricas, havia um que permanecia virado. Com face de vidro trincado, que encarava uma parte pintada em cor verde limão, estava o porta retratos. Entreo vidro espedaçado e o fundo de madeira com um adesivo de preço, R$1,99, estava a imagem impressa de um ultrassom. O filho deles.

Duas semanas atrás ele saíra de casa deixando um beijo, dois amores, uma toalha molhada sobre a cama e a porta do armário aberta. Voou de Brasília a Belo Horizonte, deu sinal para a compra do novo apartamento e assinou os papéis do novo emprego. Voltou no dia seguinte, mais rápido do que pensava. Escolhera o nome dele, seu primeiro filho, Sebastião. Encontrou a casa revirada, a mãe dela aos prantos na sala, prantos de pessoas que nunca conheceu, dos parentes que esquecera o rosto. A vida tomou-lhe em 24 horas tudo que fazia a palavra amor fazer sentido. Na noite do cigarro, da lua, fazia uma semana desde a partida de sua mulher e seu filho, vítimas do tempo curto que se leva entre um sinal apontar o vermelho e um homem falando ao celular pisar no freio antes de entrar para sempre na vida de desconhecidos. Na verdade, com aquela lua, com aquelas cores de caleidoscópio mal iluminadas, podia-se perceber que uma semana antes, quem morrera de fato era ele. Ela estava mais viva que nunca: no tapete xadrez, na estante de cores cítricas, no sofá verde musgo, naquele cheiro da toalha, ainda molhada, que dividiram no dia da partida. Era ela. elee Sebastião que estavam naquela sala. Em tudo que não fazendo sentido fazia mais sentido naqueles 20 metros quadrados. Ele sorriu e murmurou: Ah, Gardênia, tu já era mãe, e de um grande Sebastião.