AURELIANO VAI FICAR SÓ

José Roberto queria morrer.

Era domingo. E como se sabe domingo é um ótimo dia para se querer morrer. Talvez nem tan-to, mas domingo não é um dia para sorrir. Domingos são cinzentos, assim, quando acaba o futebol, às seis, e começa a bater aquele vento frio nas pernas. Nossa! Domingos são deprimentes. José Ro-berto Sentia isso todos os domingos, mas naquele domingo foi pior, foi diferente, foi forte. Mortífero.

José Roberto Nunes Pedrosa não gostava do seu nome, porque era composto. E nunca as pes-soas o chamavam pelos dois nomes. Disso ele também não gostava. Não gostava de ser chamado de Zé Roberto, não gostava de ser chamado de Beto, não gostava de Zé, nem de Roberto, e no colégio, quando o chamavam de Nunes, porque o colégio era militar, também não gostava. Não gostava também de mulheres que conversavam sobre depilação. Não podia ouvir as palavras virilha, ou axi-la, tinha logo náuseas. Menstruação também era um tema que não o agradava. Sexo o agradava, mas falar de sexo não, e quando a circunstância o obrigava a tratar do assunto, alguns termos eram sem-pre eufemizados, e ficava muito constrangido se alguém dissesse as coisas como elas realmente eram. Certa vez, no salão de beleza, estava rodeado por mulheres. Na TV do salão, uma reportagem sobre gases vaginais durante a relação sexual.

José Roberto quis sumir naquele exato momento. Não queria estar ali, ouvindo aquilo. E a si-tuação piorou para ele: uma das mulheres perguntou à cabeleireira o que aquele doutor estava fa-lando na TV, e a cabeleireira prontamente respondeu:

— Ora, mulher, quando tu tá fudeno e peida pelo bicho.

José Roberto decidiu nunca mais cortar o cabelo.

Ele também não gostava de pessoas que riam dentro de ônibus lotados. Não entendia o que era tão engraçado. Várias pessoas amontoadas, suadas, indo ou vindo de um lugar provavelmente desa-gradável não era, de jeito nenhum, uma situação que merecesse tanta alegria. E sem sair do tema ônibus, José Roberto abominava qualquer indivíduo que, dentro de um coletivo, ou na fila para to-má-lo, se aproximasse dele pra falar sobre o clima, a demora ou sobre o jogo de ontem, a menos que fosse uma bela garota, mas belas garotas não têm esse costume.

Enfim, José Roberto era um chato. E estava se considerando um chato naquele domingo. Colocou comida e água para Aureliano, o gato, apagou a luz do quarto, acendeu a do banheiro olhou pra cima e conversou bem sério com Deus.

Aureliano, o gato, às 5 para as 6, como de costume, acordou seu dono com um típico miado de fome. José Roberto lembrou de uma frase que vira na blusa da Fernanda Meireles: "Only my cat understands me". E era isso mesmo. Aureliano era o único ser vivo que José Roberto conseguia compreender e que o compreendia, e naquele 14 de julho, o bichano parecia mais amável, como se não quisesse que José Roberto o deixasse nunca, nem por um segundo. Mas era preciso. Para sua surpresa, a segunda-feira não estava com aquela cara amarelada que costuma ter. Estava agradável, com um vento suave, resquícios felizes de uma chuva fora de hora, mas bem-vinda, árvores úmidas, pessoas se agasalhando com os próprios braços ou com os de seu par, carros cautelosos por causa do asfalto molhado e uma série de aspectos atípicos para uma segunda-feira. José Roberto não esta-va sentindo os olhos pesados, como era comum, nem a sempre inconveniente dor nos ombros, esta-va tudo harmonioso demais, tudo sorridente demais, até o trocador do ônibus estava jovial: "Bom dia, aqui seu troco!". E, antes, quando subiu no ônibus, a música que estava tocando era "Die, die my darling", do Metallica.

Chegou ao trabalho cantarolando uma música do Bob Dylan: "When your mother, lá, lá, lá your invitation, and your father, lá, lá, lá he explains…", cumprimentou Débora, a secretária, seu Nepomuceno, o copeiro, Alberto, o arte-finalista, Vitória, a diagramadora linda, Cristiano, o contí-nuo chato, D. Fátima, a jornalista mãezona, o cara do CPD, que não falava com ninguém, por isso José Roberto não sabia o nome, Ruth, sua colega estagiária, D. Luiza Medeiros de Aragão, a chefe, que exigia que seu nome fosse escrito assim, completo, e o erudito, ao mesmo tempo folclórico, vascaíno e sem função definida, seu Matos.

As seis horas passaram com impressionante rapidez. José Roberto se despediu de todos e saiu em direção ao ponto de ônibus. O dia não estava mais com aquele semblante agradável da manhã, já estava quente, como todos aqueles intermináveis dias de julho. Então José Roberto se deu conta de que sua conversa com Deus não surtira muito efeito. No Terminal, sentou num banco, porque não queria enfrentar aquela fila cheia de estudantes com apostilas amassadas. Dez minutos se passaram, e um velhinho, com um sotaque aristocrático do Sul se aproximou e disse:

— Tu aparentas ser um bom rapaz.

José Roberto tremeu e não soube o que dizer. O velhinho tirou um pequeno frasco do bolso e perguntou:

— Tu poderias colocar uma gota de colírio no olho deste pobre homem?

— Claro, respondeu José Roberto, meio envergonhado.

O velhinho sentou-se no espaço que restava do banco, tirou os óculos e inclinou a cabeça para facilitar o trabalho do rapaz, que teve uma dúvida:

— Nos dois olhos?

— Não, o esquerdo não existe mais, respondeu o velhinho, sorridente. Perdi numa pescaria, coloque apenas uma gota no olho direito, resumiu o senhor.

— Certo.

Por descuido, caíram duas gotas, mas José Roberto pensou que não faria mal uma gotinha a mais. O velhinho agradeceu e saiu pensando: "Não pude salvá-lo".

José Roberto foi ao centro da cidade para finalmente comprar seu Memórias de Minhas Putas Tristes, de García Márquez. Colocou o troco no bolso e o resto da quinzena na carteira. Sentou-se no ponto de ônibus e começou a ler a orelha do livro. Lembrou de Aureliano, o gato, que recebera o nome em homenagem a Aureliano Buendía e sentiu saudade, mais do que deveria. Um outro rapaz sentou-se ao seu lado, e José Roberto já preparava o que dizer para cortar o assunto.

— Cara, me arranja um trocado?, falou o moço.

— Tem não, véi, respondeu José Roberto.

— E se eu descarregar meu 38 em ti?.

— Calma, cara....

— Calma o caralho!.

E Aureliano ficou só.