Irineu na contra-mão
Estou correndo, eu sei. Mas agora que já cheguei até aqui, devo continuar. As placas estão do avesso, que coisa engraçada. É aviso de não estacione ou velocidade máxima permitida? Não dá pra saber. Ah, na época em que fazia auto-escola, eu sabia todas. Tinha aquela com um veadinho correndo, nunca vi nenhuma placa daquelas na rua. E também nunca vi nenhum veado atravessar a rua, ao menos o animal.
Até o semáforo está de costas. Estaria vermelho, amarelo ou verde? Às vezes fico pensando por que é que o vermelho é indicativo de perigo. A pimenta é vermelha. Muitas frutinhas tóxicas são vermelhas. Mas é o amarelo que significa atenção, o vermelho é imperativo: pare! As pimentas e os venenos deveriam ser amarelos – apenas como aviso, cuidado! -, pois quem é que teria a pretensão de nos mandar parar antes de termos a boca ardida ou a vida encurtada? Deus?
Não estou enxergando muito bem o fim da avenida. Tem uma luz embaçada lá, parecem duas velinhas acesas para que, de joelhos, nos derramemos em prece. Eu já rezei muito, ai meu Deus, como rezei. Virgem Maria! Esfolei minhas rótulas na igreja, e pra quê? Meus olhos continuaram baços. Minha fé continuou mais trêmula que a chama das velinhas quando a porta da igreja se abria e o vento frio da Rua da Saudade entrava. Chamava Rua da Saudade porque dava no cemitério. Na outra ponta, a Igreja de São Benedito. Acho que não era vento não, era um arrepio. E a chama das velinhas mexia, remexia, mas não se apagava. Diferentemente da minha fé.
As luzes estão maiores... mais brilhantes... parecem os seus olhos, Marialva. Maria Alva. Pele branca, tão branca... Por que é que preferiu ir parar do outro lado da Rua da Saudade, quando o tapete vermelho ia ser estendido na porta da igreja para nós? Eu amarelei, nem dei atenção à sua palidez. Não parei. E o tapete era vermelho: pare! Tinha tanta vida ainda, Marialva... tinha tapete vermelho e tudo... mas você foi para o lado errado da Rua da Saudade. Estou ouvindo a buzina, os olhos ficaram maiores, eu não estou vendo nada, não é vermelho, não vou parar agora, Marialva me espera na outra ponta da Rua da Saudade, o tapete agora vai ser verde: siga.