ANJOS NEGROS

Ana Paula, passeando e sem o menor compromisso com os próximos minutos, avistou uma bela igreja no centro de São Paulo. Há muito não entrava em uma casa de orações. Ao aproximar-se, ouviu música. Resolveu adentrar.

Poucas pessoas estavam ali, naquela tarde de domingo. Como professora de música, encantou-se com a virtuosidade do músico.

Despreocupadamente, dirigiu-se ao centro do templo. Como uma hipnotizada, sentou-se e começou a escutar a melodia sacra. Fechou os olhos e desligou-se de tudo, menos da bela música que ouvia. Inebriou-se com sua aguçada audiência. Maravilhou-se ao sentir que a ponte entre ela e Deus, repentinamente, estabelecia-se. Imediatamente, foi invadida por uma sensação única de bem-estar. Sentia-se em transe, encantada.

A próxima música que passou a ouvir, Ave Maria, de Gnoud, era a sua preferida. O som melodioso manteve-a em êxtase.

Lentamente foi abrindo os olhos. Propositadamente, observou, com muita calma, cada centímetro daquele templo: paredes e teto, as imagens, as pinturas dos vitrais; os entalhes na madeira do púlpito, a profusão de arranjos de flores e a alvura da toalha branca sobre o altar. Tudo estava lhe parecendo maravilhoso, divino. Por várias vezes, tentou visualizar o executante daquele bálsamo musical; em vão.

De repente, a música parou. Ao olhar para trás, ela viu o segurança da igreja ajudando o organista a descer as escadas e o encaminhando até um dos bancos. Pôde perceber que este competente músico era deficiente visual e que possuía a cor de sua pele. Era um belo jovem negro.

Sem o menor pudor, aproximou-se desse homem, que agora estava ajoelhado, orando. Aguardou ele rezar. No momento em que ele se sentou, ela se pôs ao seu lado e, de repente, sentiu um enorme impulso de agradecer àquele homem as belas execuções musicais. Emocionada e segurando a mão do organista, apresentou-se e teceu-lhe os merecidos elogios. O cego, timidamente, sorriu e lhe agradeceu as palavras. Começaram a conversar. Como é comum nessas ocasiões em que ocorre a imediata identificação, as horas voam. Ao consultar o relógio, Ana Paula observou, estupefata, que já estava conversando com Raul há duas horas. Constataram que, entre outras coincidências, ambos possuíam o mesmo gosto musical.

Em um dado momento, ela perguntou quando ele começara a tocar.

“Despertou em mim a vontade de ser músico, quando ouvi pela primeira vez a música Angelitos Negros. Lembro-me perfeitamente bem de que, por volta de meus dez anos, viajava em férias com minha família. Meu pai adorava músicas espanholas. E, ao ouvir, no automóvel, esta música, lembro-me bem que ele fez alguns comentários com minha mãe sobre a ausência de imagens, em nossas igrejas, de anjos negros.”

— Não existem anjos negros? — perguntei de imediato aos meus pais.

— Existem, meu filho! — responde mamãe. Você mesmo é, para nós, um lindo anjo negro.

— E, quando eu morrer, o padre vai deixar colocar minha fotografia lá?

— Claro, meu filho, senão o bom Deus briga com ele. — A resposta de mamãe foi, para mim, satisfatória.

Raul, rindo, perguntou à jovem:

— A propósito, Ana, tem imagem de anjo negro aqui nesta igreja?

Ana Paula deu olhada geral. Emocionada, sentiu até vontade de mentir, mas preferiu usar de franqueza. Com voz entristecida, respondeu:

— Não! Infelizmente, não! — foi sua enfática resposta.

— Ok! Então me ajude a subir as escadas e coloque-me ao lado do órgão em que eu estava tocando.

Quando sentiu estar ao lado do instrumento musical, ele sentou-se e, dando os primeiros acordes, falou rindo para Ana Paula:

— Como não dá para visualizar, vamos pelo menos ouvir o som de um Angelito Negro invadindo esta igreja. Emocionado, executou esta música como nunca o fizera.

Enlevados, de mãos dadas, saíram contentes da igreja, como se velhos conhecidos fossem. Decidiram permanecer por mais algumas horas juntos. Combinaram de jantar numa casa de blues.

Domingo, 19 de novembro de 2006/21:32.

Luiz Celso de Matos
Enviado por Luiz Celso de Matos em 04/02/2008
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