O Tempo de Eduardo Dias
O TEMPO DE EDUARDO DIAS
(cena da peça de teatro publicada no livro "O Tempo de Eduardo Dias - Tragédia em 4 tempos", teatro, co-autoria com Francisco José Pereira, Florianópolis, Editora Garapuvu, 2005, 112 pág. - um caderno de 16 páginas em papel Couché Fosco 90 g reproduz em cores diversas obras do pintor catarinense)
PERSONAGENS:
CASSANDRA, de nome HECATA, bruxa, feiticeira, cartomante, mãe-de-santo, 41 anos
AMÉRICA DIAS, filha de Eduardo e Maria Covasolli, 37 anos
MARIA SOARES DIAS, a MARIA PORTUGUESA, mulher de Antonio, 22 anos
PAULISTINHA, agenciador de galeria de arte de São Paulo, 38 anos
OSMAR, marinheiro, primeiro homem da Maria Portuguesa, 29 anos
EDUARDO DIAS, artista plástico, 68 anos
ILDEFONSO JUVENAL, intelectual e jornalista, integrante do meio sociocultural da Província, na maioria conservador, 46 anos
SECRETÁRIO, personificação da autoridade pública, introduz Guttmann Bicho na Província e compra suas obras, pouco mais de 40 anos
MARTINHO DE HARO, artista plástico, admirador de Eduardo, 33 anos
GALDINO GUTTMANN BICHO, pintor, nascido em Petrópolis, RJ, 52 anos
DEODÓSIO ORTIGA, Diretor da União Beneficente e Recreativa Operária, ator e encenador do Grupo Teatral João Dal Grande Brüggemann, responsável pela atividade do Teatro da UBRO, 40 anos
MARIA COVASOLLI DIAS, italiana, mulher de Eduardo, 70 anos
DOUTOR VITÓRIO E. FRANKLIN, Delegado Regional de Polícia da Capital (Florianópolis, SC), meia-idade
ANTONIO DIAS, pintor, filho de Eduardo e Maria Covasolli, 33 anos (apenas referido)
CORO, a opinião pública, o clamor popular, a verdade e a certeza, a meia voz e o boato, a intriga e a fofoca, o mexerico e a calúnia, aquele que diz o que ninguém fala individualmente, aquele que fala o que a educação e as regras de convivência social não recomendam dizer
3º TEMPO - NOITE DE 4 DE NOVEMBRO DE 1940: MORTE
Cena 6 - Casa de Eduardo Dias
(A ampla cozinha de uma casa simples, de pessoas pobres: um fogão a lenha nos fundos, a um dos cantos do aposento, uma estrutura de metal suportando, na parte superior, uma bacia de alumínio um pouco amassada e, na inferior, uma jarra esmaltada para água limpa, diversos armários de louça, talheres e mantimentos, uma mesa grande de madeira maciça, algumas cadeiras e um lampião de querosene aceso sobre a mesa. Junto ao lampião, absorto no que faz, um homem usa um lápis. O papel sobre o qual trabalha repousa na mesa. O homem é Eduardo Dias.)
EDUARDO - Madona! Madona mia! Bambina, mia cara bambina!
(Uma mulher surge na cozinha. É baixa, mas não muito, gorda, mas não tanto, tem 70 anos, mas mostra muita energia, decisão e vitalidade. Trata-se de Maria Covasolli Dias, a italiana casada com Eduardo e mãe dos seus filhos. Simula uma certa impaciência enquanto o homem apenas levanta os olhos do papel quando lhe faz uma pergunta.)
MARIA COVASOLLI - Fala, seu Eduardo. Fala, criatura.
EDUARDO - É engraçado.
MARIA COVASOLLI - O que é engraçado, seu Eduardo?
EDUARDO - É engraçado como aconteceu hoje. Por que não me perguntaste, esta noite, o que me perguntas todo santo dia quando chego em casa? Aquilo de querer saber do dinheiro, com uma das mãos na cintura, a outra estendida esfregando o indicador no polegar e o pé tamborilando no chão em sinal de impaciência?
MARIA COVASOLLI - (Encenando a pose descrita pelo marido, a voz dura e exigente) Cadê o dinheiro, seu Eduardo? Trouxe o dinheiro para as despesas, seu Eduardo? Como é que o senhor acha que a gente vive, seu Eduardo?
EDUARDO - (Sorrindo) Isso mesmo. Por que não me perguntaste hoje?
MARIA COVASOLLI - Porque não quis.
EDUARDO - Mas devias fazer. Feito assim, me dá a impressão de que ainda não cheguei em casa, de que deveria estar esperando do lado de fora da porta.
MARIA COVASOLLI - E ia adiantar alguma coisa perguntar pelo dinheiro, seu Eduardo? Algum dia por acaso adiantou?
EDUARDO - Não, na verdade hoje não ia adiantar. Mas tenho a encomenda de um novo cenário.
MARIA COVASOLLI - (Incrédula, com um certo desdém na voz) Sei, mais um. (faz pequena pausa) Que eu é que vou ter que mandar cobrar se quisermos ver a cor do dinheiro.
EDUARDO - (Sem transição) O que a dona Cassandra anda fazendo na rua?
MARIA COVASOLLI - Ora, homem, ela não está presa nem proibida de sair à rua.
EDUARDO - Mas nunca a encontro a esta hora, só pela manhã.
MARIA COVASOLLI - E quem te disse que ela é obrigada a cumprir horários?
EDUARDO - Hoje ela me cumprimentou e perguntou como eu estava. Que, se eu precisasse de alguma coisa, ela estaria às ordens, é só mandar me chamar, ela disse, que estarei por perto, completou. Pareceu-me muito estranho e esquisito.
MARIA COVASOLLI - Ora, deixa-te de cismas, homem de Deus. Pára com essas superstições e implicâncias bobas. Ela é apenas uma mulher que dá um duro danado para ganhar a vida. Como todo mundo por aqui, por sinal. Ela faz o que pode, e ainda leva conforto, consolo e esperança a todos que a procuram. Há algum mal nisso?
EDUARDO - (Rindo descontraído) Não se trata então de uma ave de mau agouro, dona Maria Covasolli?
MARIA COVASOLLI - Seu Eduardo! Contenha-se! Contenha essa sua língua impertinente! É claro que não se trata de ave de agouro algum, seu Eduardo!
EDUARDO - Madona, vê o que te trouxe da Biblioteca Pública. (remexe nos bolsos do casaco) Certo que já os leste, mas o caso é que está cada vez mais difícil encontrar novidades para ti. Há quanto tempo eles não compram novos romances para empréstimo?
MARIA COVASOLLI - (Pega os dois livros, examina as capas e folhas de rosto) Hum... "Germinal", Émile Zola. Perfeito. E esse: a "Madame Bovary" de Gustave Flaubert. D'accord, monsieur. Merci beaucoup.
EDUARDO - (Ainda absorto em seu trabalho, o lápis correndo nervoso sobre o papel) Por falar em livro, o Ildefonso Juvenal, o nosso escritor e historiador, parece mesmo decidido a levar avante a idéia de escrever aquela biografia.
MARIA COVASOLLI - Perda de tempo.
EDUARDO - Falou-me hoje que já começou a juntar material.
MARIA COVASOLLI - É, bateu aqui em casa esta manhã. Pegou com a Meca um daqueles cadernos com recortes que ela vive colando.
EDUARDO - A América tem um caderno desse tipo?
MARIA COVASOLLI - Claro. Vários. Até parece que não conheces a tua filha Meca. Ela fez o pobre homem jurar que devolvia o caderno em um mês.
EDUARDO - Pois então. Disse-me ele também que vai começar a acertar com o Antonio, assim que ele se recuperar, o programa para a exposição conjunta de 42.
MARIA COVASOLLI - Bobagens. Para que tudo isso? Vai te dar, por acaso, algum dinheiro ou vais ficar apenas com uma medalha de ouro, se hoje os tempos não forem ainda mais bicudos, como naquele "Festival Eduardo Dias", no Teatro Álvaro de Carvalho, em que todo mundo levou o seu e não sobrou quase nada para ti?
EDUARDO - É mesmo. Bem lembrado, mulher. 1918. 18 de outubro, o mês do fim da Guerra com o armistício definitivo da Alemanha. E onde anda aquela medalha, Maria, que nunca mais vi?
MARIA COVASOLLI - Aquilo? Virou feijão há muito tempo, criatura. Não tínhamos mais o que comer, um dia, e então dei um destino útil à medalha.
EDUARDO - Mas não podias fazer isso, mulher... Como foste fazer isso comigo, Maria?
MARIA COVASOLLI - Não podia mas fiz. Agora não tem mais remédio. Também não podia deixar os meus filhos passando fome. E isto vale mais do que qualquer medalhão. De mais a mais, já faz muitos anos que passei nos cobres a tua condecoração de ouro.
EDUARDO - Isso me dói no coração, Maria.
MARIA COVASOLLI - A fome dos meus filhos também me doía fundo, seu Eduardo.
EDUARDO - Tu ainda me matas um dia, Maria. Ainda acabas com a minha vida.
MARIA COVASOLLI - (Sem, aparentemente, dar importância aos queixumes do marido) Dize-me o que fazes aí tão compenetrado, homem de Deus. Será o retrato de Emma Bovary?
EDUARDO - Estou me lembrando do Mato Grosso, quando fui até a tua casa pedir um retrós preto para terminar de coser um sapato feminino.
MARIA COVASOLLI - Credo, criatura! Isso é coisa do século passado!
EDUARDO - 1898, sim. Moravas na frente da sapataria do papai, onde eu trabalhava. Nós nos víamos sempre, com "olhos de terneiro", mas nunca havíamos nos falado até então.
MARIA COVASOLLI - Eu então respondi: (simulando afetação e coqueteria) "Não, meu senhor, não tenho retrós preto, só grená, mas passando núbia preta fica bom, pode usar em seus calçados".
EDUARDO - Foi a maneira que encontrei de te conhecer oficialmente para poder te pedir em namoro.
MARIA COVASOLLI - E dizer que eu me deixei cair nessa esparrela!
EDUARDO - Pronto! Terminei. Senta-te aí, cala-te e escuta.
(A mulher senta-se à mesa. O homem se levanta. Pigarreia limpando a garganta. Procura a melhor luz para a leitura e declama.)
EDUARDO - Maria eu amo-te com amor tão santo
Porque encantos só em ti achei
Amo os teus olhos que animam minha vida
Madona linda que eu sempre adorei
Tenho saudades daquelas tardes belas
Que muitas delas eu por ti perdia
Do Mato Grosso que eu amava tanto
Do rosto santo que alegre eu via
Este rosto que aqui eu falo
É teu, Maria
Que eu adoro e amo
Este rostinho tão mimoso e belo
Madona linda
Que em sonhos eu chamo
MARIA COVASOLLI - (Desviando o rosto para tentar esconder qualquer resquício de emoção) Isso é maldade com uma pobre senhora septuagenária, seu Eduardo! Isso não se faz! Maldição, estou cansada de ouvir tuas poesias...
EDUARDO - Que faço só para ti.
MARIA COVASOLLI - ... e ainda fico amolecida desta maneira, que vergonha!
(Eduardo Dias acaricia o rosto da esposa e beija-lhe a boca. Subitamente, de uma forma lúgubre, o relógio bate as dez da noite. Seu som deve, de alguma forma, transmitir desconforto e inquietude. Logo a seguir, ouve-se um tumulto crescente que vem da rua. Pessoas gritam, choram, falam alto, agitadíssimas. A turba irrompe então pela cozinha: Cassandra, América, Maria Portuguesa, o Coro. Todos falam ao mesmo tempo.)
TODOS - Morreu, morreu, ele acaba de morrer!
MARIA PORTUGUESA - (Preenchendo um súbito silêncio que se faz, de tal forma que suas palavras se destacam com clareza, os braços abertos e um tom ambíguo que tanto pode ser de dor ou de alívio) Estou viúva!
AMÉRICA - Foi ela, ela é a assassina! (aponta para Maria Portuguesa) Ela matou o nosso Antonio!
(Maria Portuguesa corre para fora, seguida de Cassandra, América e os demais, enquanto a luz se apaga bruscamente.)
FIM DO TERCEIRO TEMPO
Florianópolis, julho de 2004 e janeiro - junho de 2005
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Pai sem Computador", novela juvenil)