TEREZINHA PEREIRA- Amor no tempo presente
Amor no tempo presente
A setentona virgem e solitária passava suas manhãs sentada em um dos bancos do jardim da praça. Gostava de sentir o cheiro das flores, das folhas e da grama bem cuidada. Encantava-se com o canto dos pássaros, com o vôo das borboletas e não perdia o vaivém das pessoas da cidade. Noticiava sobre as cores de vestes e calçados e até mesmo a respeito do estado de corpo e alma dos que por ali passava. Tinha ciência do rumo de cada um, se ia para o trabalho, para a escola, ao mercado, à igreja ou a qualquer outro lugar. Inteirava se fulano estava de bem ou não com beltrano, se alguma feia ou bela donzela estava de namoro com um príncipe encantado ou mesmo das trevas. Espiava se alguma piranha tentava fisgar algum peixe dos graúdos. Esquadrinhava cada parte da praça com seu olhar sagaz sem nada desaperceber.
Enquanto isso, e isso ninguém entendia como, a jamais casada tecia com apuro, sem deixar escapar malha alguma, o seu tricô com fios de lã ou de linha, de acordo com a estação do ano. A cada tempo do frio, presenteava as quatro irmãs que tiveram sorte diferente da dela, cunhados e a sobrinhada toda, com coloridos pares de meias, de luvas, gorros, casacos e cachecóis, para enfrentarem a invernada daquela terra do sul. No verão, era hora tramar os fios e fazer biquínis e saídas de banho para as mocinhas da família.
Naquela manhã de tempo quase de chuva, quase sem sol, sem saber de onde surgira, ela surpreendeu-se com um casal que se beijava com sofreguidão, no lugar mais sombreado da praça, sob a mais antiga das árvores. De súbito, ela largou o saco de fios e as agulhas de tricotar sobre o banco e apertou os olhos para certificar-se do que parecia ver. Estava certa de que, até então, jamais presenciara um beijo tão duradouro. Tornara-se impaciente para ver o rosto dos amantes de cabelos brancos e silhueta de contornos decaídos, como a que ela própria via, quando arriscava a olhar-se no espelho.
Imóvel, para melhor divisar a cena, ela sentiu disparar o coração, quando o casal, ainda unido pelo infindável beijo e por caloroso abraço, pôs-se numa posição em que lhe permitiu ver quem era a mulher e deduzir quem seria o homem. Desacreditou. Só podia ser uma visagem........ A mulher que estava grudada ao poeta de terno marinho roto e botinas de goma, o mesmo que já havia dormido com centenas de mulheres comprometidas ou não daquela terra pobre de novidades, era a viúva recente do ilustre médico da cidade.
Porém, o que a tricoteira nunca poderia imaginar, era o tempo que esperaram por aquele beijo. Tempo registrado a cada dia pelo vate com a ponta de um canivete, num tronco daquela árvore da praça. Seriam dezenove mil, cento e sessenta marcas........ Por obra do pai da moça, que a havia levado pra lugar estrangeiro, quando soubera que ela trocava cartas atravessadas de poesia com o desafortunado trovador. “Filha minha nasceu pra viver dos prazeres da sociedade e não das mínguas da poesia.” Para o poeta, que também registrara, dia a dia, seus encontros fogosos com mais da metade de um milhar de mulheres, sem vez alguma haver sentido o perfume exalado das cartas de amada e por isso mesmo, sem haver tido mulher única fixada em sua casa por mais de vinte e quatro horas, havia sido a mais longa das semanas. No velório do médico importante, ele já havia interpelado a mulher há anos amada. Nos primeiros dias do luto, fora rechaçado.Entretanto, estava certo de que não havia mais tempo para a espera. Tanto ele como a mulher de todos os seus sonhos, já beiravam as oito décadas do viver.
Nos dias seguintes não desgrudara o olhar da mansão do falecido. Haveria de aparecer uma nesga de porta ou de janela nalgum instante. Foi no sétimo dia. Ela saiu pela porta da frente e seguiu desacompanhada para a igreja, para a tradicional missa. Ao findar do ofício divino, o vate se pôs no último lugar da fila das condolências e logo que se viu a sós com ela na frente da igreja, abraçou-a. Disse-lhe que sentia muito pela morte do médico ilustre da cidade, mas que mais sentiria se ela se recusasse a acompanha-lo até o jardim da praça. Lá, ela poderia ver, gravadas num tronco de uma árvore centenária, todas as marcas que ele havia feito para registrar os dias que passaram sem se verem, ele sempre a carecer dos afagos de uma mulher. Mesmo estando certa de que ele mentia, pois não era desconhecido, que além de poeta ele era um boêmio de todas as zonas, ela pegou docemente a mão que ele lhe estendeu. Assim, de mãos dadas, foram caminhando em direção à árvore que mais sombreava a praça. E então........
Nem precisa dizer que no final da tarde, todos os moradores daquela terra já sabiam do ocorrido entre a idosa recém-viúva e o velho poeta pobretão, em plena praça pública, à sombra daquela árvore secular, de tronco todo sulcado pela ponta de algum canivete.