Ester

ESTER

(conto publicado no livro "Relatos de Sonhos e de Lutas", contos, Rio de Janeiro, Editora Record, 4ª. ed., 2007, 144 pág.)

Ester na janela, olhos assombrados, vendo passar carros, ônibus, caminhões, vagamente pressentindo pessoas alegres, felizes, preocupadas, apressadas, suadas, mal-enxergando rostos bonitos, barbados, barbudos, crispados, duros, raivosos, Ester na janela maravilhada com tantos homens, mulheres, crianças sempre a passar para lá e para cá (não seriam sempre as mesmas pessoas, dia e noite, a irem de um lado para o outro só para fazerem o encantamento de seus olhos, de sua cabeça?), Ester particularmente fascinada com as carinhas das crianças indo e vindo incessantemente, sentindo uma grande peninha delas, tadinhas, o tempo todo presas dentro dos carros e dos ônibus, sem poderem brincar e correr, sem uma corda para pular, uma árvore para trepar, uma fruta para apanhar, uma boneca de pano para ninar e, especialmente, sem poderem estar a uma janela vendo carros, ônibus, caminhões passarem só para elas. Ester na janela mesmo quando deitada, os ouvidos atentos ao ritmo e ao zumbido dos veículos ágeis e indormidos, uma leve apreensão quando o fluxo se quebra por momentos, Ester na janela mesmo quando dormindo, a sonhar com as pessoas que trocam de cara e mudam de feições só pra fazê-la contente, Ester na janela e a mãe, vem cuidar do menorzinho, guria!, vai varrer o terreiro, menina!, anda logo com a comida das galinhas, sua pestinha!, Ester carinha contrafeita - vai.

Ester na janela, olhos distantes e fantasiosos, carros, ônibus, caminhões passando e com eles viajando sua imaginação, sonhando com a cidade grande, talvez Barra Velha, quem sabe Itajaí, Ester sem saber mas esperando de repente um outro pai e uma outra mãe, lindos, alegres e felizes, convidando-a a entrar num belo e veloz carro vermelho, levando-a bem depressa para bem longe dali, carregando-a finalmente para a cidade, para uma cidade qualquer, Ester que o mais distante que esteve foi na vila de São João do Itapocu, perdido lugarejo escondido a dois quilômetros do asfalto, pior ainda que sua casa, que lá não passam estes carros, ônibus, caminhões todos, doces tentações a excitarem estranhos desejos, ignoradas vontades. Ester na janela, a compreensão de que todos os carros perseguem um destino, todos apenas passam à sua frente e se vão para um determinado lugar, muitos por certo nunca mais retornarão, percorrendo outros caminhos, outras estradas ainda mais desconhecidas para ela, os veículos passam e seguem sempre, Ester cara bonitinha - fica.

Ester na lanchonete, do outro lado da federal, carros, ônibus, caminhões chegando e parando, de pertinho as pessoas não são tão alegres e bonitas como quando seguem velozes, os homens parecem cansados, eternamente cansados e insatisfeitos, as mulheres aparentam aborrecimento, um aborrecimento constante e deprimido, as crianças não, as crianças são as únicas que verdadeiramente demonstram satisfação e que ostentam um glorioso ar de aventura, logo elas, que a Ester surgiam como pobres e coitados pequenos seres dignos de pena e de comiseração, fora as crianças só os motoristas, tanto de ônibus e de caminhões, parecem em realidade viver algo de bom, mesmo quando reclamam da comida, ou do trabalho excessivo, ou da falta crônica de dinheiro, ou da distância da família a que estão condenados, mesmo reclamando são eles as únicas pessoas vivas que ela tem visto, os motoristas e as crianças, as crianças que riem logo após um beliscão, um grito, um tapa, um puxão de orelhas ou até de cabelos, seus pais e suas mães não os mandam cuidar das galinhas, tirar o cisco do quintal ou pajear os irmãozinhos, mas exigem delas coisas incompreensíveis e absurdas. Os motoristas são crianças grandes, de barba sempre por fazer, são alegres e amigos, brincam com ela e deixam-na contente apesar da vidinha que leva, eles contam histórias de viagens espetaculares, narram aventuras acontecidas nas cidades, falam de mulheres fabulosas, por todos admiradas e respeitadas, são eles que diariamente fazem renascer e inflar seus antigos sonhos de cidade grande. Ester simpatizando com os caminhoneiros, sentindo-se grata pela contribuição que eles trazem a seus devaneios, vendo-os como crianças amigas e alegres. Ester trabalhando, o dinheiro quase faltando em casa, tantos irmãozinhos a criar que ela às vezes até perde a conta de quantos são, Ester trabalhando sem sutiã, por moda e por calor, os caminhoneiros sempre junto à pia do balcão para observarem seu trabalho, curvada a lavar copos e pratos, a dizerem bobagens e a lamberem os beiços grossos, Ester sentindo uma importância que nunca sentira antes, Ester cara de mocinha - ri.

Ester na noite, voltando para casa, dizendo, não gosto de flertar, sei que no fim os homens querem mesmo é dar uma cantada, tentar alguma coisa, vêm de longe, muitos deles casados e dão em cima da gente, já houve muita vez que chegam pro meu lado prometendo e prometendo enquanto a mulher deles foi lá dentro fazer xixi, dizem que voltam se a gente for boazinha, podem trazer um presente, um brinco, um anel, quem sabe preferes dinheiro?, talvez não saibam mas insultam a gente fingindo ser bonzinhos, como se a gente não tivesse mãe nem pai nem uma casinha pra morar, como se a gente fosse uma qualquer. Se fosse longe daqui, num lugar onde ninguém conhece a gente, até que podia sair com eles, passear de mãos dadas, se fosse numa cidade grande quem sabe a gente podia até se sentir alegre e satisfeita, eu aí me acharia mais livre, mais independente, podia cuidar da minha vida como eu bem entendesse que ninguém tinha nada com isso, nada com o que eu fizesse ou deixasse de fazer, se as mulheres não conseguissem segurar os maridos delas o problema era só delas, eu é que não ia me preocupar com essas coisas, ia sim viver a minha vida da melhor maneira que eu pudesse, sair com quem quisesse, mas nunca ninguém acenava com o mágico convite para viver na cidade. Ester elaborando suas meditações existenciais, tentando arquitetar uma filosofia de vida que harmonizasse sua consciência com o mundo em torno, pequeno mundinho abafado e pesado, Ester inquieta, incomodada com uma esquisita ânsia de liberdade que ela não conseguia definir com precisão, Ester cara de safadinha - dá.

Ester na janela, no asfalto da rodovia carros, ônibus, caminhões passando sem mistérios, a vida passando sem mais mistérios, sem mais sonhos inúteis e importunos, cobrando tão-somente a mesquinha exigência de praticidade, de objetividade, exigindo apenas que sejam feitas as coisas que todas as mulheres da família sempre fizeram, única fórmula existente para garantir um mínimo de sobrevivência. Ester na janela, lá no fundo escuro de algo insondável e difícil bóia uma pequena esperança, derradeiro resquício dos sonhos encantados de outrora, ao lado a guria chorando de fome e o peito murcho sem leite, a leiteira vazia sem leite, Ester detestando pensar nisso, mas vez por outra, especialmente quando chega à janela, o pensamento é mais forte que sua repulsa e ele se impõe como uma luz cintilante a querer arrastá-la novamente para outra armadilha, para outra traição, e Ester experimentando então, rápido e fugaz, o desejo de alguém que compreenda, de alguém que aceite este seu jeito vivido apesar dos dezoito anos, mas logo afastando esta ridícula esperança olhando os veículos que têm pressa e as pessoas tão comuns e tão vulgares que neles viajam frente a sua janela, sua tão conhecida janela onde se inscreve todo o diário de sua vida, Ester cara de mulher - sai.

Ester na janela, apenas o hábito de muitos e muitos anos, lentamente compondo seu diário, um diário circular, sempre igual, sempre o mesmo, o asfalto já não lhe dizendo mais nada, tudo o que ele lhe falava um dia foram mentiras e ilusões, coisas mesmo em que só uma garotinha ingênua pode crer, em verdade o asfalto nunca tomou conhecimento de sua constante presença ali naquela janela, carros, ônibus, caminhões jamais a notaram a observá-los embevecida, as pessoas, vultos indistintos imersos em seus intermináveis problemas, falsos ou verdadeiros, sempre zuniam a sua frente sem sequer suspeitá-la ali, como se ela fosse uma pedra, um arbusto, uma galinha, um detalhe insignificante compondo uma paisagem fugidia e trivial. Ester, esgotados todos os seus poucos sonhos, Ester já não pensa, de nada adianta pensar, para nada serve pensar, apenas um antigo costume trazendo-a vez ou outra à janela, entre uma tarefa e outra, entre a casa, as crianças e o roçado, Ester, colona enrugada, cara vincada e tostada pelo sol do sítio e da fonte, falando, Ester, olha o menorzinho!, vem cuidar dele senão conto pro teu pai que já volta da roça, Ester, avelhantada, dizendo pra mais velhinha, sai dessa janela, Ester, és muito menina ainda!, Ester cara de velha - diz.

Ester na janela, absorta em nada, longe na lembrança a vila de São João do Itapocu, lugar mais distante em que esteve durante toda a vida.

Pontal do Jurerê, fevereiro de 1982

(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Pai sem Computador", novela juvenil)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 02/02/2008
Código do texto: T843036
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.