ALÉM-MUNDO

Eu acordei com aquela irritação peculiar a quem acorda à tarde, justamente naquela tarde em que o sonho é aquele do qual nunca se quer acordar, de tão perfeito que seria se fosse daquele jeito a sua vida. Ora vida! Naquela tarde o grande sonho da minha vida era exatamente não viver mais, porém o carro de som da Padaria Fernandes me acordou do suicídio frustrado naquela tarde. Nada me faria rir naquele momento, mas logo após o locutor terminar de fazer a propaganda da Padaria Fernandes, a música subiu: “… by my side, by my side, wish you were, wish you were…”. Que gênio do marketing coloca essa música pra ser fundo de propaganda de uma padaria? E então um sorriso imperceptível se ensaiou em meu rosto, que nem o daquela moça branca do poema.

Desfez-se.

Algumas pessoas têm superstição com ano bissexto, dizem que dá azar. Mas comigo é diferente, e um pouco pior. Meu problema é com ano ímpar, que acontecem com bem mais freqüência do que ano bissexto. E esse 2001 veio pra confirmar essa incômoda tendência. Mas veio com tudo, resultando em 14 comprimidos de Tolrest 25mg circulando pelo meu corpo. Se minha mãe um dia souber, ela vai dizer que foi Deus que me fez comer aquela coxinha com coca-cola logo depois dos comprimidos, o que me fez vomitar boa parte das drogas que em breve me matariam, mas não me mataram.

Dias depois, já conformado e com medo de tentar me matar de novo e alguém descobrir, acordei cedo. Tomei banho, normal, comi qualquer-coisa com leite e qualquer-coisa e entrei no quarto do meu irmão mais velho para pegar algo que hoje não há como eu lembrar, pois meu cérebro precisou de um espaço muito grande pra guardar aquela imagem da menina de quatro, ofegante, tentando se esconder entre lençóis e cabelos. Saí imediatamente entendendo os gestos veementes de mão do meu irmão para que eu saísse de lá. Fui ao banheiro. É, eu fui. Fui constatar a habilidade do meu cérebro em guardar imagens. Mas alguma força suprema não quis que eu tivesse prazer algum, porque depois de quase 30 minutos naquele banheiro quente e úmido, eu ainda não tinha atingido meu objetivo, nem parecia estar perto.

Por curiosidade, li a bula do Tolrest 25mg, que dizia em certo tópico: “Efeitos colaterais – Disfunção sexual: ejaculação retardada”. Quando se precisa de uma ejaculação retardada… Restava saber por quanto tempo. Na mesma bula diz que a supervisão de pacientes que são tratados com a droga deve ser cuidadosa, mas à época que eu realmente a utilizava, eu não queria morrer, eu queria ficar bom, curtir minha namorada, meu estágio… mas tudo isso acabou. Ou melhor, eu acabei com tudo isso. Arranjei motivos nos espaços que a serotonina deixou vazios para terminar o namoro e pedir demissão. E tempos depois os vazios ficaram imensos, e minha vida se tornou um monte de nada. Parecia que o mundo girava ao contrário, ao contrário do meu caminho. Então as razões que a TV, as músicas de pop rock e as comédias românticas americanas dão pra vida pareciam difíceis demais de compreender. E eu não as compreendia. E pra não sofrer com isso, decidi não mais querer saber delas.

Falsifiquei a receita. No Word mesmo se faz isso com bastante facilidade. E o CRM do médico, é só ver naqueles livrinhos de plano de saúde. A assinatura é uma questão de criatividade. Antes de ir à farmácia, é importante dobrar e desdobrar a receita no meio ou em um quarto várias vezes, pra dar um aspecto de que você guardou dentro de um livro ou na carteira, e o farmacêutico não desconfiar, afinal você não é o único suicida da cidade. Mas isso aqui não é um manual.

Escrevi uma carta, uma breve reclamação para o caso de não dar certo. Como se adiantassem as queixas. Falei sobre a infância, sobre os amigos que não tive, sobre as garotas que não me quiseram, mas nada que seja digno de uma releitura. Olhei pela última vez meu quarto, meu adesivo dos Rolling Stones na porta, os gatos, que nunca me deixam dormir, no telhado ao lado da minha janela, o som tocando “Um ponto oito”, O Primo Basílio que eu nunca terminei de ler, o guarda-roupa cheio de recortes da Playboy da década de 90 (especialmente uma foto da Déborah Secco de agosto de 1999 em que está escrito na sua bunda: “touch me”), a janela entreaberta me contando o que acontecia pela última vez no meu mundo… olho pela última vez tudo que me deixou feliz e triste durante todos esses anos, mas que agora não importava mais.

Enchi um copo com água e fui ao banheiro. Dois comprimidos, água, mais dois, água. Olho para o espelho, mas ele não ajuda, ele me transforma num nada menos ainda. A pia de louça reflete a luz amarga e amarela da insignificância. O vento entra por uma fresta entre a parede e a telha e balança a porta do box. Entre o décimo e o décimo primeiro comprimido, um questionamento, mais um, me distrai. Um pequeno defeito etimológico, uma redundância que não se desfez ou que se fez ao longo da história da expressão suicidar-se. Porque “sui-” é a própria tradução do “se”, e “-cidar” é matar, traduzindo grosseiramente, então “suicidar” é “matar-se”, mas “suicidar-se” é “se matar-se”. Enfim, escovo os dentes e deito para esperar a morte. E fiquei pensando na inutilidade de se escovar os dentes se você vai morrer. Até que, no intervalo da Tela Quente, a coxinha com refrigerante voltou com toda força, num peristaltismo reverso fulminante. Depois veio a dor de cabeça, como se fosse a ressaca da vida. Faltou ar. O dia amanheceu, e eu não consegui dormir, muito menos morrer. O sol deu um tchauzinho irônico, como se dissesse: “ainda vai?”.

Eu conseguia sentir o sangue caminhando lentamente pelos meus braços, quase parando, quase, quase. Então eu dormi. E só. Abri os olhos e vi as mesmas coisas. O adesivo dos Rolling Stones na porta, o som agora não mais tocando, O Primo Basílio interminável, o guarda-roupa com as fotos da Playboy (inclusive a da Déborah Secco de agosto de 1999), e a janela entreaberta me dizendo: “… by my side, by my side, wish you were, wish you were… Padaria Fernandes, aqui você encontra uma grande variedade de pães, bolos…”.