A Busca
Ela acordou com a sensação de que precisava mudar alguma coisa. Não sabia o quê, mas em seu peito ressoava uma urgência, um desassossego que só era possível sentir, não havia palavra. Levantou-se e foi se olhar no espelho.
O tempo tinha passado. Não podia se queixar, pois os anos foram até gentis com ela. Poucas rugas nos cantos dos olhos, ainda guardava um certo viço da juventude. Será que precisava de uma nova cor nos cabelos? Um corte diferente? Seria isso suficiente para aplacar essa inquietação? Balançou a cabeça em negação. Sabia que não era algo externo. Clamava mais lá no fundo...
Olhou pela janela e pensou que aquele dia poderia ser o início de um novo capítulo. O sol surgia ainda tímido, por entre algumas nuvens. A brisa gelada do começo da manhã era, ao mesmo tempo, promessa e dúvida. Naquela cidade caótica, nunca se sabe o que o dia nos reserva.
Decidiu que precisava sair. Ver a rua, ver gente. Caçar, nos olhares desconhecidos, o que poderia ser a resposta que ela buscava. Ou não. Apenas seguir o fluxo da vida correndo incontrolável no decorrer das horas, e apostar que no momento seguinte seria abalroada por alguma verdade que faria tudo ter sentido.
Vestiu-se de forma simples, nada que chamasse atenção. Cores sóbrias. A vida toda fugiu das cores, da intensidade que elas transmitiam. Sempre os mesmos tons básicos, cores sisudas, cores que querem passar despercebidas. Mas, dessa vez, sentia que podia ousar. Já não se sentia mais prisioneira das convenções sociais, do olhar do outro, do medo de ser autêntica.
Abriu a gaveta da cômoda e tateou, indecisa, até encontrar o que queria. Abriu um sorriso de canto de boca. Um batom vermelho, cor de sangue, guardado para um momento como esse, um dia como esse. Um dia comum e especialmente extraordinário. Cobriu os lábios com aquela cremosidade acintosa. Sentiu-se forte. Passou a mão na porta e saiu pelo corredor.
Enquanto esperava o elevador, sentia-se um pouco apreensiva, um pouco arrependida. Em sua cabeça pipocavam perguntas: “O que diabos estou fazendo? Que ideia idiota, é só mais um dia comum na minha vida ainda mais comum.” Sentia que as pernas quase eram atraídas de volta para dentro do apartamento, em busca do lugar seguro de sempre.
Sem perceber, a porta do elevador se abriu, e lá dentro uma moça segurando a mão de uma menina a observava com olhar interrogativo. A moça, um pouco apressada: “Você vai entrar?”
Ela foi puxada de volta do seu redemoinho de pensamentos e sentiu-se atraída agora pelo olhar curioso da menina — olhos gigantes, desses que parecem querer engolir o mundo. Enquanto o elevador descia, essa conexão de olhares foi mantida, como que numa transmissão secreta, uma confissão necessária. Como se aquele fitar cheio de vida a preenchesse com uma energia de querer saberes, de buscar encontros.
A porta se abriu no térreo. A moça saiu rapidamente, puxando a menina pela mão, no movimento acelerado que vemos todos os dias em todo o mundo. Pressa de tudo. Ela se deteve um pouco, ainda com os olhos na menina. A criança se virou e sorriu, acenando um tímido adeus. Era um sinal, ou um convite. Não fazia mais sentido voltar.
Ela desceu as escadas do hall e parou na calçada. O sol já ganhara força, e a sensação do calor em sua pele era boa. Pensou que já não se lembrava qual tinha sido a última vez que se esticou no sol, tal qual os gatos fazem nas soleiras das portas. Começou a caminhar e, após algumas passadas, se percebeu caminhando como quem o faz por fazer. Parou — não era isso que queria. Queria andar sem correr, sem ter que chegar a algum lugar. Relaxou os ombros e recomeçou, dessa vez pé ante pé, se empenhando em dedicar todos os seus sentidos àquele momento.
Pensou que era difícil romper com velhos hábitos. Uma vida inteira fazendo o que tinha que ser feito, simplesmente porque alguém disse que era assim que a vida devia ser. Uma existência no automático, apenas sendo dirigida pela demanda alheia, atendendo a expectativas e desempenhando papéis que não foram escolhidos por sua vontade. Sentiu um misto de tristeza e amargor. Sabia que os anos pela frente já eram menos do que os que ficaram para trás. Percebeu que não podia mais vacilar.
Quando deu por si, notou que já havia andado bastante e já não reconhecia as ruas. Olhou em volta e avistou um café. Teve vontade de parar um pouco e comer alguma coisa, já que estava há muito tempo sem colocar nada no estômago. Escaneou o espaço rapidamente e escolheu uma mesa um pouco recuada, perto de uma árvore que proporcionava uma sombra providencial.
Sentou-se e, para não se sentir ridícula, agarrou o cardápio e o folheava sem ler. Quando notou que ninguém a havia percebido, sentiu-se mais à vontade e passou a observar melhor o lugar. Era um café desses pretensamente parisienses, com diversas referências ao estilo de vida francês. O ambiente não era de todo desagradável, e ela estava decidida a não tecer críticas desnecessárias. Focou em escolher algo para comer e passar o tempo.
Fez um sinal para um jovem que aparentemente trabalhava ali como garçom. Ele demorou a perceber o gesto, pois estava de cabeça baixa, entretido em seu aparelho celular. Ela bem sabia o que era ser dragada para dentro desse mundo digital, e que às vezes é muito difícil conseguir sair dele. Decidiu dizer um “oi”, para chamar sua atenção. A primeira vez não funcionou. A segunda vez também não. Apenas na terceira tentativa, já com um tom de voz mais alto, é que o rapaz a viu e rapidamente veio em sua direção. “Desculpa, moça, não tinha visto você aí. O que você quer pedir?”
Era um jovem de cerca de dezoito anos, não mais que isso. Magricelo, reticente. Daqueles que não sabem o que fazer com as mãos e que desviam o olhar se confrontados por muito tempo. Teve um pouco de dó dele e decidiu que não ia se contaminar pelo fato de ter chamado por ele três vezes. “Um café e uma fatia de bolo do dia. E uma água com gás, por favor.”
O rapaz tomou nota, repetindo baixinho as palavras que ela havia dito, como quem anota as palavras do professor na sala de aula. “Só um pouco, já vou trazer.” Ela o acompanhou com o olhar, não para se certificar se ele traria o que ela pediu de forma correta, mas cativada pelo rapaz franzino que se movia um tanto desajeitado.
Ele cortava a fatia de bolo com um cuidado quase gentil. Ela quase conseguia sentir a sutileza com que ele acomodava o pó do café na prensa para extrair seu amargor. Seus movimentos não se mostravam imprecisos, indecisos. Pelo contrário: seus gestos eram fluidos e certeiros, quase centenários.
Ela o observou ainda enquanto ele caminhava com a bandeja até sua mesa, e dispunha o prato com o bolo, os talheres e a xícara de café como quem dá pinceladas em uma tela. Nada naquele rapaz a faria pensar que ele teria tanto zelo em servir aquela pequena refeição. Ao terminar, ele sorriu um sorriso retesado e murmurou: “Bom apetite.”
Ela assentiu com a cabeça e desfrutou com prazer aquela fatia de bolo de laranja e o café forte e amargo. Mas o que a marcou naquela experiência tão cotidiana foi a percepção do outro, para além do que é aparente.
Ela terminou seu café, deixou embaixo da xícara o pagamento e uma gorjeta merecida. Sentiu que precisava recompensar o rapaz pela sua entrega — não pelo bolo ou pelo café, mas pela sua presença em tudo aquilo. Saiu sem fazer alarde. Não queria constranger o moço.
Seguiu em sua caminhada, sentindo-se revigorada por aquele momento de conexão, e não conseguiu evitar uma expressão de satisfação genuína, como há muito tempo não sentia. Naquele momento, tudo parecia tão mais colorido. As luzes que refletiam nas vitrines, as copas das árvores — tudo tinha mais cor. Até os sons pareciam mais vivos: o gorjeio dos pássaros nos fios, o barulho das crianças na praça — tudo pulsava de uma forma diferente. Ou talvez ela só se sentisse diferente.
Não percebeu o quanto tinha andado até chegar na rua da antiga casa em que morou com seus pais. Reconheceu os paralelepípedos desgastados, as mesmas casas geminadas, a pracinha minúscula com um balanço e um escorregador. Seu corpo estremeceu um pouco ao rever aquelas imagens tão familiares e, ao mesmo tempo, tão esquecidas dentro de si.
Saiu da casa dos pais há poucos anos, assim que teve condições para tal. Sua infância, apesar de solitária, não fora exatamente ruim. Mas não conseguia recordar bons momentos daquele tempo. Lembrava-se apenas de que se sentia só.
O pai saía cedo para trabalhar e só voltava muito tarde da noite. Ela não aguentava esperar acordada por sua chegada. A mãe se ocupava com as coisas da casa pela manhã, preparava-a para a escola e seguia também para o trabalho como professora em uma escola municipal nas redondezas. Chegava à noite, geralmente sem paciência para as questões de menina que ela trazia.
Logo, aquelas recordações só traziam um sentimento de vazio, de solidão. De silêncios. Foi caminhando mais devagar, pois sabia que, a qualquer passo, avistaria a casa da sua infância e adolescência. Ao ver a fachada — o portão pintado de branco, as janelas altas, o jardim na entrada — foi sendo tomada por uma onda, como uma enchente de dentro pra fora. Como um barulho que começa sutil, insistente, e vai se agigantando até virar estrondo no peito.
Sentiu os olhos ficarem úmidos. Esforçou-se para não deixar romper a enxurrada, mas não teve jeito. Desceu pelo seu rosto sem fazer alarde — e nem precisava. Extravasou apenas porque precisava sair. Lá no fundo, a dor que havia gerado essas lágrimas há muito havia adormecido. Ocultara-se de tudo e todos, disfarçada de indiferença e isolamento, de ressentimento e culpa. Tinha sido encolhida de tal forma que já quase não se reconhecia. Mas morta, ela não estava.
Permitiu-se soluçar um pouco, rir um pouco, praguejar um pouco. Depois, entregou-se à calmaria — a uma sensação de paz que só aparece depois da tormenta. Lembrou-se do fim de vida de seus pais: separados, sozinhos cada um à sua maneira, resolutos nas suas formas de sofrer, resignados na vida e silenciados na dor. Teve pena. Teve raiva. Ao final, apenas entendeu que fizeram o que podiam, com suas limitações e suas verdades.
Ouviu uma trovoada ao longe e, ao erguer o olhar, viu as nuvens carregadas, como estavam seus olhos há poucos minutos. Pensou que o céu também se permite chorar de vez em quando. Quando a chuva começou a cair, espaçada, ela não sentiu nenhuma urgência. Nada naquele momento parecia ser importante. Não sentiu vontade de se abrigar. Não precisava correr.
Ao contrário, ansiava por aquele batismo celestial. Sentiu que cada centímetro do seu corpo precisava renascer a partir daquele instante. Olhou uma última vez para a casa da sua infância — uma infância que não foi — e entendeu que agora estava leve. Não era uma mudança, afinal, o que a inquietava. Era um resgate. Um salvar a si mesma. Ela, que tinha ficado esquecida naquela casa silenciosa. Ela, que precisava se sentir notada, se sentir amada. Ela, que enfim podia se encontrar consigo mesma.
Estendeu a mão e colheu uma flor amarela que cismou em nascer ali, no jardim da casa estéril. Uma vida que insistiu em ser. Começou seu trajeto de volta para casa com a certeza de que, agora, mais do que nunca, ela habitava sua própria pele.
A chuva podia continuar.