Réquiem para a Guanabara
Nunca pensei precisar lidar com gringos num ponto de apoio em Capim Grosso, na Bahia, de madrugada. Noruegueses porque assisti a um filme norueguês hoje. Mas deveriam ser alemães. O trintão bancando um adolescente de Stranger Things versão pervertida, cujo título se mantém perfeitamente, apalpou meus seios mentalmente. E eu nem os tinha levado comigo. Ficou lá, no fogo, junto com minha coleção de cantadinhas juvenis da bala Ice Kiss que ia dar pro meu namorado.
Eram 17h57 quando eu senti que não era preciso ser muito esperta para entender que algo muito errado estava acontecendo. O erro já começou em ter embarcado mesmo diante de fortes indícios negativos: um pseudopadrasto roubando minha cena de despedida triste, o sol que derreteu meu protetor solar que virou um ácido colírio e, não menos importante, a feiura que se alastrou pelo meu corpo como um vírus maligno. É uma pandemia interna. Todas de mim estão infectadas. Não há um espaço no meu país em que não haja um carcomido da não beleza. A minha cloroquina é acreditar em Deus. E a vacina é morar numa clínica de terapia.
Passou-se um minuto e, com toda a paciência que alguém não deveria ter em momentos de alta periculosidade, subiu ao andar de cima do ônibus um homem que parece uma lasanha de frango de microondas: derretido, de um amarelo pus e com aspecto pastoso. Um homem-amoeba, mas com certa classe. Uma secreção nasal encontrada somente em crianças traquinas. Mesmo depois de umas quatro horas de atraso, nossa maionese com pernas desceu do ônibus e atravessou uma longa estrada para comprar pamonhas — em um explícito ato de canibalismo.
Eu queria uma. Eu compraria uma. Menos, claro, se fosse uma motorista em horário de trabalho.
Eu não sei o seu nome. Mas nem todo personagem exige um. Como fazia um doido muito certo de minha cidade, que usava um único nome para todo e qualquer ser humano, o chamarei de Chiba. Sendo este o meu primeiro e único elogio.
Você estava sentado no vaso sanitário de Barro, no Ceará, e não suportava tamanha coincidência. Não sabia se iria conseguir sair dali com dignidade, já que todo o seu resto foi excretado. Você se lembrou da quinta série e das calças arriadas no recreio. Você era um Jesus sem cruz, mas que foi alvejado numa pilastra da escola. Era ansioso e não sabia ir ao banheiro. Sentia vergonha de pedir, como se o que aconteceria depois fosse menos vergonhoso do que levantar a mão e verbalizar uma vontade. Na manhã seguinte, te jogaram fraldas sujas de lama no rosto. Sua mãe te deu uma surra para depois limpá-lo. Passou a mão em sua cabeça e deixou de te culpar para culpar o seu pai, aquele merda. Você pensou que isso fazia sentido. Seu pai era um bêbado que também não sabia ir ao banheiro. Você pensava que havia herdado a timidez. Você quase se sentiu compensado. Pensou que havia uma ligação com ele. Você lembrou de que ele tinha morrido e, como dizia sua mãe, é melhor ter um pai que morreu do que não ter um pai que está vivo. Você então ficou feliz.
Era madrugada e os funcionários da churrascaria Dois Irmãos estavam entrando em modo de repouso. Eles não vão embora, mas somem na sombra do restaurante. Um por um. O gerente veio ver se eu ainda estava com sinais vitais. Não, ele pensou. Me deu o seu celular com uma live de forró para que eu me animasse. Nada poderia me deixar mais abalada. Dez anos sem São João. Fui ao banheiro pra conferir se eu ainda estava feia. Sim, eu estava. O aspecto de morte não havia se desprendido de mim. Em Jacobina, pensei em todos os meus conhecidos que moram por lá e cataloguei cada um do menos ao mais provável em dar a notícia de meu falecimento para minha família. Vi o ônibus explodir e não podia subir aquela ladeira porque seria uma morte patética.
Eu sei que não sobreviveria. Resignada, continuaria sentada no meu tempo de revezamento da cadeira e morreria lá mesmo. Carbonizada com minhas duas mochilas. Aceitação da morte está nos efeitos adversos do Dramin.
Cheguei em casa numa outra madrugada. Meu corpo doía do frio que passei. Sempre passo frio porque não quero o volume de uma coberta. Tomei banho e mal aguentei me tocar. Me senti uma atleta que passou de todos os limites. Depois, só uma febre que não poderia me impedir de cuidar de tudo. Sempre fico aconchegada nas primeiras horas. Nos primeiros dois dias. Depois vou me irritando com as lãs que soltam das roupas alheias e que entram na minha casa. Não adianta varrer ou passar pano. Eu tinha que ter logo um piso de tapete felpudo. Ando descalça porque usar chinelo me faz ficar com mais calor. Deito no chão pelo mesmo motivo. Carrego em mim um grande sonho de infância: morar no Banco do Brasil ou nos Correios por conta do ar-condicionado. Não consigo ficar no carro de mãe com os vidros fechados. Odeio cheiro de carro novo, me enjoa em questão de segundos. O ar-condicionado é um soco no meu estômago. Ando de janela aberta pra não passar mal. Ela aspira o carro com as narinas. Ama até o cheiro da gasolina. É cancerígena, eu digo. Mas tudo é.
De volta ao ônibus, antes de quebrar e pegar fogo, a vida soa como uma crônica moderna:
boa noite, pessoal — olha aí, Gorete, já começou — eu poderia tá roubando — mãe, eu quero fazer xixi — mas tô aqui trabalhando honestamente — eu te disse que eles iam entrar aqui em Petrolina — pessoal, eu peço um minutinho da atenção de vocês — mãe, agora eu acho que é cocô — é verdade, chegando na Bahia sempre começa a subir essa gente — Lavínia, bota o cinto, Lavínia — eu sou pai de família e tô desempregado, pessoal— mas aí cê vê, né? Lá em Brasília a gente não vê isso — mãe, pede pro motorista parar — eu tenho 5 filhos e uma esposa de resguardo — Lavínia, fica quieta — e é porque o amor venceu, né? Olha aí a situação que a gente é obrigado a passar — tô aqui vendendo um produto da maior qualidade pra vocês, pessoal, pelo valor simbólico de apenas 2 reais — mãe, tem cocô na coberta — vou ter a bala Freegells no sabor menta com chocolate — Lavínia, eu não acredito, Lavínia — pois é, o Lula tirou milhões da pobreza, só vê se pode — tem pastilha de morango? — Lavínia, para de se esfregar no cobertor, menina — não, senhor, vou ter de menta com chocolate — é porque brasileiro tem predisposição pra ser vagabundo, aí o presidente quer ficar dando auxílio e ninguém trabalha mais — tem o famoso salgadinho Pippo’s novinho, pessoal, na mão de vocês — Lavínia, cala essa boca e senta quieta que eu vou procurar um lenço — quanto tá a bolacha? — se fosse lá nos Estados Unidos — 5 reais a bolacha — Lavínia, para de espalhar com o lenço — mas não era 2 reais? — lá eles têm um presidente — 2 reais é a pastilha, senhor — veste essa calça, Lavínia, que eu não mandei tirar — era 2 reais e agora tá 5, a gente querendo ajudar — Olha aí, Gorete, o senhor ali — 2 reais a pastilha, 3 reais o Pippo’s e 5 reais a bolacha Trakinas, pessoal — cês viram que ele disse valor simbólico — mãe, eu quero salgadinho — no mercado vocês não encontram por esse valor, pessoal — mãe — não, meu bem , no Atacadão é 4,50 o pacote com três — mãe, salgadinho — aquele pacote não é da bolacha recheada, senhora — mãe, eu quero bolacha recheada — pessoal, eu vou passar recolhendo os produtos — não vou comprar, come maçã — peço desculpas, pessoal — a gente tenta ajudar, mas aí eles enganam a gente — por qualquer inconveniente — não quero maçã — agradeço a atenção de vocês — nossa, vocês sentiram? — e quem não quiser comprar, mas quiser me ajudar com qualquer quantia — gente — não quero maçã, quero bolacha — eu recebo de coração aberto, pessoal — a carniça que subiu quando ele passou — mãe, eu quero pastilha — porque pouco com Deus é muito — minha nossa senhora, Gorete, eles sobem assim pra gente querer comprar logo — Lavínia, cala a boca — mas aí quebra nóis, uai — mãe, eu peguei meu cocô — ninguém é obrigado a sentir isso no ônibus — fala baixo, menina — e muito sem Deus é nada — agora até enlameado eles sobem — vou tá me despedindo, pessoal — mãe, o que é enlameado? — agradeço mais uma vez — cala a boca, Lavínia — é pra dizer que tá cheio de cocô , fia — alguém lá no fundo vai querer, pessoal? — mãe, eu tô enlameada — a mulher ali quer a jujuba — vixe, é a menina que tá assim? — 2 reais a jujuba de iogurte, pessoal, novinha — não é ela, não — mas o cheiro tá insuportável — é a maçã — moça, não vou ter troco — que maçã? — mãe, eu tô fedendo? — qual o pix, então? — tá não, menina — 74999 — a maçã aqui que a gente trouxe — 054384 — maçã assim só aqui — o comprovante, ó — na próxima eu venho de avião — tá podre — Deus te ajude, moça — o que tá podre? — a Guanabara não é mais a mesma — a maçã que eu trouxe — boa viagem, pessoal — daqui a pouco o ônibus quebra — vixe, era a maçã que estragou — boa noite — Lavínia, para de cheirar a maçã — ó o motorista aí — gente — eu não disse procês? — mãe, tem cocô no seu cabelo — vamos descer que o ônibus não vai mais — Lavínia, volta — qual o seu nome? — um novo ônibus tá vindo já — deixa ele falar, Lavínia — quê? — qual o seu nome? — Lavínia — é Adalto, gostou? — sim — a previsão é de 8h pra chegar aqui — ah, vai tomar — infelizmente não tem o que fazer — no olho do seu — gente, mas ele não tem culpa — vamos ter que aguardar — é uma porra mesmo — não adianta xingar, gente — Adalto — gente, aqui tem câmera — Adalto — e ainda é ameaçando? — deveria ter parado o ônibus antes — e vão monitorar vocês xingando o motorista — Adalto — e desde quando é proibido xingar motorista? — estou fazendo o possível — xingo na hora que eu quiser — a empresa vai pagar a janta de vocês — olha pra isso, Gorete — ei — não como nem a pau — ei, Adalto — não é obrigado a comer, senhora — Adal— pois eu bem vou porque é de graça — to — vamos descendo, gente — esse povo — cuidado com as escadas — se é de graça quer até injeção na testa — ô, Adalto — o degrau, olha o degrau — cala a boca, Lavínia — Adalto — oi — fica quieta, Lavínia — Adalto, eu que fiz cocô no ônibus.