"O VELHO DA LIXEIRA" Conto de: Flávio Cavalcante
O VELHO DA LIXEIRA
Conto de:
Flávio Cavalcante
A cidade acordava lenta. As ruas ainda carregavam o cheiro da madrugada, misturado ao vapor do asfalto quente. No beco estreito entre dois prédios antigos, um amontoado de lixo se acumulava próximo à lixeira comunitária. E ali, entre sacos rasgados e restos de comida, estava ele: o velho da lixeira.
Ninguém sabia seu nome. Para os poucos que se davam ao trabalho de notar sua existência, ele era apenas um vulto desgrenhado, um pedaço do cenário urbano que se misturava à imundície. Sempre vestindo um casaco surrado e um olhar perdido, ele revirava os detritos com uma paciência quase metódica, como quem busca algo de imenso valor entre os rejeitos da sociedade.
Mas Marta, uma garota de onze anos, não se deixava levar pelo medo ou pela indiferença. Toda manhã, ao passar para a escola, ela via o velho escavando o lixo e se perguntava o que tanto procurava. Até que um dia, vencendo a hesitação, ela se aproximou e perguntou:
— O senhor tá procurando alguma coisa?
O velho levantou os olhos fundos e sorriu de um jeito quase infantil.
— Sempre estou, menina. Sempre estou.
— Mas o quê?
Ele hesitou, como se ponderasse se deveria revelar seu segredo. Então apontou para um saco aberto, de onde retirou um relógio quebrado.
— Histórias — disse. — Cada coisa que jogam fora tem uma história. E eu as coleciono.
Marta franziu a testa.
— O senhor coleciona lixo?
Ele riu, mas não com gozação. Era um riso genuíno, cheio de vida.
— Para os outros, pode ser lixo. Para mim, são pedaços de vidas. Veja este relógio — girou-o entre os dedos magros. — Alguém o usou por anos. Talvez tenha contado as horas de um grande amor, ou as de uma despedida. Mas um dia, ele quebrou, e seu dono decidiu que não valia mais a pena consertá-lo. Agora, ele está aqui, esperando que alguém se lembre de sua história.
Marta nunca tinha pensado assim sobre o que era descartado. Olhou em volta, tentando enxergar além do cheiro e da sujeira. Garrafas vazias, roupas rasgadas, brinquedos quebrados... Quantas histórias estavam ali, esquecidas?
Naquela manhã, ela foi para a escola com a cabeça cheia de perguntas e uma estranha admiração pelo velho da lixeira.
Os meses passaram. Até que um dia, ele sumiu. Ninguém sabia para onde tinha ido. A lixeira continuava lá, mas agora parecia apenas um monte de lixo, sem vida, sem significado.
Marta sentiu um vazio no peito. Mas então, como um impulso, começou a revirar a lixeira, não por comida ou objetos de valor, mas por histórias. Como ele fazia.
E naquele dia, ela entendeu. Algumas pessoas colecionam riquezas, outras colecionam momentos. Mas só os sábios colecionam histórias.
Flávio Cavalcante