AS FOLHAS TAMBÉM CAEM AOS DOMINGOS

AS FOLHAS TAMBÉM CAEM AOS DOMINGOS

Eu estava apaixonado pela câmera nova de meu pai. Não era uma polaroid, definitivamente. Foi só depois do jantar e de mais alguns instantâneos tirados que ele se sentou em frente a tela do computador e acessou a internet para me mostrar onde achou uma jóia tão rara. Para a minha surpresa, não era um item tão raro assim. Estava se tornando real a volta das câmeras fotográficas em que as fotografias saem na hora em uma papel fresquinho, aquele momento registrado em algo físico que não a tela de um smartphone ou computador.

Aquela câmera ainda registraria muitos momentos felizes. Mas não foi só isso que aconteceu naquela época. Virgem Maria, não mesmo. Flávia era minha namorada e estava tendo bastante desavenças com seu ex, um viciado em opioides e apostas apelidado de “Rato” por seus colegas de uso de substâncias.

Por outro lado, eu via Flávia como um anjo na terra. Ela era doce, meiga e atenciosa. Nem parecia que havia se envolvido com o sem-neurônios do Rato. Antes de namorá-la, já havia visto eles juntos algumas vezes, ele descendo as escadarias da universidade com o braço em volta do pescoço dela, sua face feliz e radiante. Já a cara de Flávia sempre demonstrava alguma ansiedade, uma felicidade falsificada, pelo menos assim eu o sentia (E não nego que já era doido por ela).

Quando eles terminaram, a conheci e começamos um relacionamento sério. Ela me contava sempre histórias horríveis de abusos psicológico e as vezes em que ele a fizera “experimentar” a droga à força. Todas essas histórias culminaram em um ódio profundo de mim por aquele rapaz, e muitas vezes pensei em matá-lo para que ele deixasse minha dama em paz, já que ele a importunava sempre que estava chapado.

***

Foi numa tarde gostosa de domingo que aquilo aconteceu. Passei o dia na chácara do meu pai, que é escritor e vive do jornalismo e alguns livros de crônicas. Estávamos limpando as folhas que caíam da mangueira imponente, enchendo o chão de negócios finos e quebradiços. Estávamos contando piadas e então eu falei como Deus nos castigava pelo pecado original, fazendo trabalhar-nos no domingo.

“Pois é”, disse meu pai. “As folhas também caem aos domingos”. Rimos um pouco e ele parou, pensativo. “Até que isso é uma frase e tanto, não é mesmo? Vou usar na próxima publicação”. Caímos na gargalhada, e o serviço acabou mais rápido do que esperávamos. No entanto, uma figura que se aproximava na estrada perto do terreno não murado da chácara me subiu raiva nas veias. Era o Rato

“O que você quer aqui, porra?” disse eu, correndo em direção a ele. Meu pai assistia a tudo com uma cara séria de preocupação, mas não se moveu, mantendo o corpo apoiado no cabo da pá.

“Você tem que sair de perto da Flavinha!” Ele disse, chorando. “Ela é minha!”. Sua voz estava embargada e arrastada, decerto utilizou alguma droga.

“Eu já falei para você…”, não consegui completar minha própria fase, pois me atirei no Rato. Começamos a brigar como gatos disputando território, e dei-lhe dois socos na face. Dessa vez, meu pai interveio e me tirou de cima do desgraçado. Rato continuou no chão, com um olho roxo e o outro lacrimejando. Um momento de silêncio se fez e então, de súbito, Rato se levantou e correu pela estrada, sumindo de vista rapidamente.

“Eu vou matar ele.. Preciso matá-lo..” eu sussurrei. Meu pai olhou-me com espanto e me abraçou por um período de tempo que pareceu décadas. Meu velho era meu porto seguro também, e o abraço realmente me acalmou. Passado cinco minutos e com a noite já cobrindo o mundo, fomos jantar.

***

A noite inesquecível começa aqui. Eu estava sentado à mesa, com Rex (nosso cachorro) do meu lado, esperando por minha boa vontade em dar um pedaço de minha carne. Meu pai cozinhava no nosso fogão a gás, e um rádio estava ligado cantando músicas sertanejas antigas. Aquela atmosfera era tão nostálgica que parecia um flashback de uma vida passada, um dejavú de memórias que não podem ser perdidas.

“Sabe..”, começou a falar meu pai. “Eu sei que você ama sua namorada… Eu também amei muito sua mãe, e que Deus a tenha. Mas, aprendi uma coisa muito valiosa em tantos anos de vida, filho.”

Eu fiquei em silêncio, pois sentia um misto de sentimentos. Então apenas abaixei a cabeça e continuei escutando.

“Eu não quero que você seja escravo do ódio. Também não quero que você seja escravo do amor. Aquele sentimento que te colocar vendas e grilhões não irá lhe permitir ver e julgar mais nada, muito menos julgar o sentimento que lhe prendeu”

Eu arregalei os olhos, mas não entendi. Eu era jovem demais para entender. Eu queria amar Flávia, e queria matar Rato. Não tinha como mudar aquilo. Eu estava preso, talvez. Foi quando meu pai saiu do fogão e se aproximou com a panela de macarronada que eu me senti mais aliviado, pois não tinha mais preocupação em seu semblante. Eu sorri genuinamente.

“Portanto, meu filho. Não quero que você seja escravo do amor, nem do ódio”, disse ele, passando a mão em minha cabeça. “Agora espera aí!”. Ele correu para o quarto e eu me pus a por macarronada no meu prato. Antes da primeira garfada, lá estava meu pai, com a sua “nova Polaroid”.

“Vamos tirar uma foto sua com o Rex”.

Rapidamente, desci da cadeira e fiquei de joelhos, abraçando nosso cachorro. Rex lambia minha face quando meu pai apertou o botão e o papel saíra fresquinho. Uma foto linda, maravilhosa.

“Eu vou guardar”, disse meu pai, “Deixe isso comigo”. Parou um instante, pensativo e com olhar distante. Porém, como era de seu jeito, logo sorriu. “É João, as folhas também caem aos domingos!”. Rimos muito, e foi assim que nossa noite continuou.

***

Rato já havia sumido fazia um bom tempo quando Flávia teve a ideia de tomarmos um Zolpidem. “Estou cansada, João. Vamos tomar só um”. Infelizmente, demorei a perceber que Flávia já foi uma viciada como Rato, mesmo com esse tempo todo sem usar nada. Olhei para minha namorada com surpresa. Ela queria voltar a usar aquilo?

No entanto, outro sentimento tomou conta: o de magoá-la e ela terminar com isso. Já faz algumas semanas que ela vinha fria, de poucas palavras, e eu a amava tanto que só o medo de perdê-la me fazia tremer.

Aceitei tomar aquela vez. E outra, e mais outra. Quando me dei conta, Fentanil e Morfina eram comuns para mim, e eu não voltei mais para casa. Continuei em meu apartamento próximo a faculdade, matando aulas e usando muitas substâncias com a minha dama. Para mim ela sempre foi uma dama.

***

A fatídica noite nunca sairia de minha mente. Usamos demais, e eu apaguei depois da injeção no braço já marcado de tantas punções. Acordei na UTI de um hospital, com overdose de morfina e depressão respiratória. Quando recobrei a consciência e voltei a me comunicar, estava fraco e não processei direito a informação que meu pai me deu no leito: Flávia morreu por uma dose excessiva da substância.

Foi só após a alta, em casa, que tudo aquilo veio à minha mente. O namoro, o ódio pelo Rato, tudo isso. A faculdade não foi a minha prioridade. Passei semanas num misto de sentimentos e choro, mas não me vi arrasado e chorando pelos cantos, como eu esperava e sempre imaginei que fosse.

Mesmo com tanto amor que eu sentia pela Flávia, o tempo em coma foi como um processamento paralelo de ideias, sentimentos, valores. Eu a amei, mas eu não poderia salvá-la de tudo, pois tentei tanto e quase não salvei a mim mesmo. Minha consciência no período de luto sobre a verdadeira face das pessoas me deixou brando na intensidade do amor. Não só do amor, de tudo. Algo mudou em mim, eu sentia.

Entrei para um programa de voluntários de assistência para usuários de substâncias numa manhã quente de janeiro. Meu pai ficou feliz com a situação, e preparou uma pequena festa. Nossos parentes vieram trazendo bolos e doces, e eu me vi feliz pela primeira vez em muito tempo.

No dia da palestra eu estava na rodoviária, pronto para pegar ônibus.

“João!”, gritou meu pai, “Não esqueça a agenda que coloquei em sua mochila!”. Eu acenei e disse que lembrava, pois usava essa mochila há mais de dois anos e ela não se desgastava.

Subi no ônibus radiante e ansioso para o que estava por vir. Era um dia de segunda-feira, o sol brilhava no céu entre nuvens que pareciam tufos de um grande algodão doce. Sentado no banco ao lado da janela, vi quando o ônibus passou próximo a uma árvore com muitas folhas caídas. Fiquei olhando para ela, extasiado, como se já tivesse vivido aquilo, o sentimento de outro mundo.

Passei um bom tempo admirado. Num sobressalto, me recordei que não havia memorizado a hora da palestra, e talvez tivesse pego o ônibus cedo demais. Revolvi a mochila atrás da agenda e finalmente achei. Mas o inesperado aconteceu.

Um papel caíra de dentro da agenda, pousando suavemente em meu colo. Segurei fortemente com as duas mãos, chorando. Era minha foto com o Rex tirada naquela noite. Sorri, mesmo desabando em lágrimas, pois já sabia o que fazer e já havia entendido tudo que não entendi naquela noite especial.

Fui até o dia correspondente ao atual na agenda e, vendo que o horário da palestra era o que realmente lembrava, aproveitei para escrever uma frase nas últimas linhas desta mesma página. Olhei para o que havia escrito, radiante.

“AS FOLHAS CAEM TODOS OS DIAS”

Com a última combinação de sorrisos e lágrimas, fechei a agenda e voltei a admirar a janela, pensando na beleza dessa paisagem com árvores e gramíneas.