O testamento
O testamento
Cardoso I
Era uma tarde abafada de sexta-feira, e a sala da mansão de Dona Esmeralda estava cheia de gente. Não era qualquer tarde, era A Tarde — aquela em que todos aguardavam ansiosamente pela leitura do testamento da senhora Esmeralda, a madrinha de uma gama nada pequena de sobrinhos e sobrinhas, cunhados e afilhados, que sempre se comportaram com uma devoção mais voltada para o valor dos bens do que propriamente para os sentimentos.
Todos esperavam uma fortuna. Ou, ao menos, algo para cobrir os gastos do ano. A expectativa estava no ar, mais pesada que o clima da sala. Dona Esmeralda, que sempre se apresentou como uma mulher de muitos mistérios e longas viagens, parecia a personificação do bom gosto, do luxo e da opulência. Os rumores diziam que ela era rica como os deuses, com um pé na França e o outro em algum banco suíço.
Sentados ao redor da mesa de mogno, seus parentes mais próximos sussurravam entre si, calculando o que fariam com suas futuras heranças. O sobrinho Jorge já se via comprando uma mansão na praia, a tia Marilda planejava renovar sua coleção de perucas e, a prima Beatriz sonhava com um carro novo, algo que a fizesse parecer ainda mais importante nas festas da alta sociedade.
"Com certeza, ela nos deixou tudo!", disse Jorge, empoleirado em sua cadeira de couro, com uma atitude de quem já estava recebendo o prêmio.
"Eu já estou pensando em como vou dividir a fortuna... talvez 60% para mim e o resto para os outros", disse a tia Marilda, com um sorriso travesso, ajeitando sua touca de veludo.
"Não se esqueça de mim, minha querida", resmungou Beatriz, enquanto dava leves tapinhas em sua bolsa de couro.
Finalmente, o advogado entrou na sala, um homem de óculos escuros e gravata imponente, que parecia levar a gravidade do momento com a seriedade de um juiz. Ele tinha o semblante de alguém que carrega segredos pesados, mas quando se sentou à mesa, sua expressão era mais desconcertada que de costume.
“Meus caros,” começou ele, ajeitando os papéis com uma solenidade que faria qualquer um imaginar que se tratava da entrega de um trono, “estamos aqui para ler o testamento da saudosa Dona Esmeralda.”
Os parentes se inclinaram para frente, os olhos brilhando de expectativa.
“Vamos ver o que a madrinha nos deixou…” Jorge murmurou, quase esquecendo de respirar.
O advogado tomou um gole d’água, e começou a ler o testamento com uma calma que beirava a tortura. O papel amassado e surrado fazia com que a tensão fosse crescente. Quando ele finalmente chegou ao ponto crucial, sua voz parecia estar acompanhada de um profundo pesar.
“E, portanto, após a cuidadosa análise das finanças da senhora Esmeralda, declaro que a falecida não deixou nenhum patrimônio a ser herdado. Na verdade, ela deixou... dívidas.”
O silêncio foi absoluto. Como se o tempo tivesse parado. Jorge quase caiu da cadeira, Marilda ficou com as mãos trêmulas sobre sua touca e Beatriz soltou uma risada nervosa, que logo se transformou em um resfolegar histérico.
“Dívidas?!” exclamou Jorge, o rosto ruborizado, com os olhos arregalados. “Mas como assim, dívidas?”
“Sim, meu amigo,” o advogado continuou, com um leve sorriso nos lábios, “parece que Dona Esmeralda investiu todos os seus recursos em obras de arte que, segundo os especialistas, não possuem valor algum. Ela também gastou bastante em viagens exóticas, como uma tentativa fracassada de abrir um restaurante de escargots em Paris, e, para completar, fez uma dívida enorme com uma empresa de cosméticos...”
Beatriz interrompeu, meio atônita: “Mas... e a mansão? E os carros de luxo? E as joias?”
“O que restou disso tudo,” o advogado disse, com um ar quase divertido, “é um monte de antiguidades falsas, uma coleção de chapéus de verão e alguns pratos quebrados.”
O silêncio retornou, mas agora com um toque de incredulidade e desconcerto. Marilda, que estava prestes a desmaiar, recobrou o fôlego e falou, com um sorriso forçado:
“Bem, mas ao menos... ela deve ter deixado algo, não? Uma pequena lembrança, um anel, quem sabe uma xícara de chá de porcelana?”
O advogado sacudiu a cabeça e, com a calma de quem tinha acabado de sair de uma terapia de grupo, completou: “Ela deixou para todos vocês uma carta de agradecimento pela amizade e apoio durante todos esses anos. É... um gesto bastante gentil.”
Jorge, Marilda e Beatriz se entreolharam, tentando processar a revelação. Mas a cada palavra do advogado, a risada nervosa de Beatriz ficava mais alta, até que, finalmente, ela se rendeu e exclamou:
“Então, o que temos aqui é um grande e glorioso... nada!”
O advogado assentiu com a cabeça, com uma leve expressão de quem estava alheio ao caos que causara.
E assim, naquela tarde abafada, os parentes de Dona Esmeralda descobriram que, ao invés de herdar uma fortuna, o que restara foi uma lição sobre as armadilhas do luxo e da ilusão. Afinal, a verdadeira herança de Dona Esmeralda era o valor do trabalho e da honestidade, algo que ninguém ali parecia entender muito bem.
E assim, se foram, cada um para o seu canto, mais uma vez se perguntando o que realmente se esperar quando se está esperando... algo que nunca chega.