A culpa
Carlos Antônio foi para a bicicleta ergométrica cumprindo protocolos médicos necessários a quem já caminhou léguas e léguas no infinito do tempo. Ligou a tevê para se distrair daquela rotina física que em nada lhe agradava. Ossos do tempo... A apresentadora noticiava um acidente em que uma criancinha linda fora lançada do veículo e levada ao hospital em estado muito grave. Sem pausa. O noticiário seguia com um assalto a uma loja, que feriu mortalmente a operadora de caixa que, pacificamente, entregava a féria do dia. A apresentadora respira. Sem pausa. Um veículo desgovernado atingira várias pessoas em uma calçada, tirando a vida de uma adolescente que ia para a escola. A apresentadora está triste. Sem pausa. Veio a história da jovem, bela, do interior, que arranjou namorado na capital e, por ciúmes, acabou enterrada em um jardim. A moça pede comercial. Tudo aquilo em um dia quando Carlos Antônio viveu os benefícios do ócio, lendo, conversando, vendo séries e, agora, tomava conhecimento. Dava uma culpa de estar minimamente feliz. Um estado de tristeza impotente lhe invade a alma. Desliga a tevê. Despreza a bicicleta e se sente observado por temerosa barata no canto da parede, antevendo, assustada, a morte. Uma vassoura o socorre. Abre a porta e enxota a visita, que encontra a relva, a liberdade e a vida.