O relógio da repartição
Meu Deus, parou! - gritaram todos quando às 15 horas, 17 minutos e 23 segundos o relógio daquela repartição pública parou de funcionar.
Como assim? O relógio? Você está falando DO relógio? Isso mesmo, aquele mesmo a quem todos apelidaram como Boss, o eterno, o que estivera lá desde a sua fundação, cujas peças eram feitas de um material misterioso que nunca se enferrujava ou ressecava, jazia lá, imóvel, parado naquele eterno instante, como uma fotografia de si mesmo. E em tons sépia. Ninguém ousou mexer no artefato, por mais que todos quisessem ver o que estava a ocorrer, temiam que piorassem a situação. Mandaram chamar Eurico, o rapaz que cuidava do arquivo morto e das cartas.
- Eurico! Vá lá na sala do doutor Rebouças e diga pra ele da situação.
- Mas tudo isso por causa de um relógio velho? - respondeu o jovem.
- Anda logo! - disse outra pessoa.
Eurico subiu as escadas que conduziam à sala do diretor, o doutor Rebouças, homem íntegro, de ares sérios e poucas palavras, embora cordial e amável. Encontrou a porta entreaberta e viu o diretor ouvindo o rádio com semblante cirscunpecto.
- Doutor Rebouças, com licença, o pessoal lá embaixo está solicitando a sua presença - disse Eurico, tímidamente.
- Agora não, estou acompanhando o decreto presidencial - respondeu ele com secura.
- Mas, doutor é...
- Shiiiuuu - e fez um gesto com a mão para que aguardasse. Na sua testa era notória apreensão. Fazia um calor sufocante, muito embora o céu parecesse de tempestade.
No rádio, uma voz grave anunciava as últimas medidas do novo governo para conter a onda de insatisfação popular que se alastrava pelo país: protestos, prisões, confrontos entre policiais e estudantes, notas de repúdio... Havia uma ameaça pairando sobre a pátria e cabia ao novo governo tomar todas as medidas para conte-la, por mais dolorosas que soassem, sob a pena de estar faltando ao compromisso que firmou diante do povo. Eurico sentou-se na cadeira diante do doutor e ficou ouvindo o conjunto de medidas muitas das quais não entendia, ou não lhe diziam a respeito. Pelo menos era o que pensava naquela época. Tudo o que queria era avisar o diretor e voltar para o seu posto de trabalho para ganhar o seu pão de cada dia. Os políticos que cuidassem da política.
Os minutos se passaram em uma lentidão de fim de tarde, pela janela os contornos dos prédios já começavam a se esmaecer e uma luz alaranjada se via em alguns murais. Trabalhadores passavam na padaria fumando seus Malboro ou Lucky Strike, enquanto os coletivos já aceleravam seus passos.
- É pau pra dar em doido! - disse o Diretor desligando o rádio e inclinando-se para trás.
Permaneceu algum tempo assim enquanto olhava para o ventilador de teto mergulhado em reflexões. Depois de um tempo, suspirou e voltou-se ao rapaz:
- Pois bem, o que aconteceu?
Eurico, que já estava aflito com essa demora, respondeu lacônico.
- O relógio lá embaixo parou e o pessoal quer que o senhor veja.
Nesse momento, dr Rebouças esboçou uma reação enérgica. Levantou-se e dirigiu-se correndo até o salão principal da repartição onde os funcionários estavam amontoados discutindo a situação do Boss. Eurico chegou pouco depois e pôde vê-lo a inquirir a todos sobre a situação. As respostas foram iguais. O relógio simplesmente parou.
Parou às 15 horas, 17 minutos e 23 segundos.
Ao ouvir a unanimidade, dr Rebouças parou e pensou no que se faria. Em um determinado momento consultou seu próprio relógio de bolso. Foi quando um sorriso leve e irônico se desenhou em seus lábios. Dirigiu-se até a parede onde estava o relógio e disse a seguinte frase:
- Concordo com você, Boss!
Os funcionários olharam com estranheza e perguntaram o que fazer.
- Não façam nada. Deixem o relógio tal qual como está. - e dirigiu-se ao escrivão - Redija um memorando e entregue-o na minha sala. No demais, voltem aos seus postos.
E subiu de volta à sua sala. Abriu a janela e olhou todas aquelas pessoas que seguiam suas vidas. Respirou fundo e pensou mais uma vez.
- Eu também concordo, Boss!
Eurico lembraria bem desse quando, 21 anos depois, Valmir, o rapaz do Arquivo morto entraria na sua sala e diria.
- Dr Eurico, o relógio lá embaixo voltou a funcionar do nada.
Desceu e viu Boss de novo em seu ofício de computar o tempo. Riu. Enquanto no rádio se anunciava a Nova Constituinte.