COMIGO NÃO TEM MARACUTÁIA

Comigo não tem maracutáia

Meu capital tinha voltado à estaca zero. Precisava começar tudo de novo. Sabia que em Goiás tinha deixado muitos amigos que poderiam ajudar-me a reconquistar meu espaço no comércio ambulante. Voltar pra Goiás parecia ser a melhor alternativa. Comecei a despedir-me dos parentes e preparar para partir. Minha mãe chorava pelos cantos e sua alegria de antes, transformara-se numa profunda tristeza.

Despede de parente aqui, despede de parente ali e numa dessas idas e vindas, ao chegar em casa, percebi que minha mãe tinha um brilho diferente nos

olhos. Que será?

– Meu filho, venha cá! Você não precisa mais ir embora.

Compadre Isaac acaba de sair daqui. Ele quer que você trabalhe no armazém com ele, lá em Picos. Você vai aceitar, não vai?

Não tinha como recusar! Mesmo que a oferta não fosse vantajosa, não poderia fazer sofrer aquele coraçãozinho de mãe.

– E cadê Isaac?

– Está em Santa Rosa e disse que você fosse para lá.

Minha mãe arrumou a mala. Fui ao encontro de Isaac. Pernoitei no retiro de meu futuro patrão e só no outro dia viajamos para Picos.

A tia Maria, esposa de Isaac, ficou muito feliz em ver-me chegando para trabalhar em seu comércio, pois o armazém ocupava a parte da frente da residência e ela assumia o balcão, na ausência do marido. Tendo uma pessoa de confiança trabalhando ali, a patroa poderia cuidar melhor dos filhos

e dos afazeres domésticos.

No mesmo dia em que cheguei, Isaac viajou pro Recife e deixou comigo uma lista com o preço das mercadorias. Inicialmente assustei-me com o peso de tamanha responsabilidade: tomar conta de um grande comércio de secos e

molhados e o patrão viajara, antes mesmo de me inteirar sobre tudo que se vendia ali.

As prateleiras estavam abarrotadas de mercadorias das mais diversas espécies e marcas. Sacarias empilhadas para venda no atacado, contornavam as paredes, e na linha do balcão, algumas abertas para venda à granel.

Logo que Isaac saiu, chegou o primeiro freguês. Uma senhora da cidade queria comprar canela em casca.

– Quanto é um quilo de canela? – perguntou.

– É trinta cruzeiros – respondi, consultando a lista.

– Pois pese meia quarta bem pesada pra mim.

A mulher queria 125 gramas. Naquele tempo não tínhamos balança de precisão como temos hoje. Rapidamente, tomei um peso de quinhentos gramas e pus num dos pratos da balança. No outro prato, despejei a canela. Quando os pratos se alinharam horizontalmente e o ponteiro parou no centro

da haste, peguei o meio quilo de canela pesado a “ouro e fio”, dividi em duas partes e coloquei uma metade num prato e a outra metade no outro. Aquinhoei as partes tirando daquela que tinha mais e colocando na que tinha menos, até a balança acusar que ambos os pratos tinham o mesmo peso. Teríamos,

portanto, duzentos e cinqüenta gramas em cada prato. Repeti a operação até conseguir os 125 gramas solicitados pela cliente.Embrulhei a mercadoria num papel, entreguei àquela senhora e fiquei esperando o pagamento.

Ela não pagou. Em vez disso, atirou o pacote sobre o balcão e berrou:

– Eu pedi bem pesado e não foi isso que você fez! Depois eu volto. Você vai ver.

Logo entendi o recado: ela voltaria para fazer minha caveira, quando Isaac chegasse.

No sábado seguinte, a mulher voltou e fez o mesmo pedido em alta voz, decerto queria que o patrão escutasse. Refiz todo processo de pesagem tal qual da vez anterior. Meio quilo, depois uma quarta e finalmente a meia quarta solicitada, sempre submetendo cada parte divida ao fiel da balança.

– Eu quero meia quarta bem pesada, ou você pesa bem pesado ou não levo. Olha aqui seu Isaac, na semana passada estive aqui e esse empregado seu me atendeu do mesmo jeito. O tempo todo reparei como ele pesava a canela.

Assim não quero! – protestou em alta voz.

Isaac aproximou-se de mim.

– Bote mais um pouco na parte dela, deixe o prato da balança baixar.

Coloquei mais canela, até o prato oscilar e pender para um lado, indicando que aquele prato estava mais pesado do que o outro.Ela recebeu o embrulho, pagou e saiu, mas comigo não tem maracutáia, eu sabia que a freguesa pagara por apenas 125 gramas e deveria estar levado aproxidamente 150. Mas foram às ordens do patrão que obedeci, afinal, a mercadoria era dele.

Em seguida, Isaac me chamou - pensei com meus botões: “ É agora!”

– Seu “Guaxi”, a mulher queria meia quarta bem pesada, para levar umas gramas a mais, você está certíssimo, mas o freguês sempre tem razão.

Aquele empresário, sabiamente, me deu uma grande lição de pós-venda. Entendi perfeitamente que o grau de satisfação do cliente é muito importante para manter cativa a clientela. Também nunca questionei por que me chamara de “Guaxi”, talvez visse em mim uma esperteza semelhante a do guaxinim que não se deixa surpreender e dificilmente cai em armadilhas.

Aquela freguesa não conseguiu tirar meu emprego, nem mesmo me levar a sofrer uma advertência ou recriminação. O “você está certíssimo” ouvido do padrão, confirmava minha vocação ao que é justo e fiel. “Mas o freguês tem sempre razão” é tática para não perder a freguesia.

LIMA, Adalberto Antônio; SILVA, Francisco de Asiss Lima Diassis et al. O Brasil nosso de cada dia.