Ave rasante (ou Sobre o poder I)
Em algum lugar existiam duas categorias de aves. As que tinham o poder de voar a grandes altitudes, e aquelas que, apenas, realizavam voos rasantes. Que não nos preocupemos com as nomenclaturas e taxonomias desses animais. Apenas aves.
As de grandes altitudes dominavam todo o espectro geográfico do lugar. Estavam em todos os cantos. Para lá e para cá, quando queriam e porque podiam. A elas o poder. As de voos rasantes, por seu turno, criaram uma cultura de proximidade à terra. Eram ligeiras em relação a muitos seres vivos que habitavam, preponderantemente, o solo. Mas a frustração em algumas delas em saber que detinham asas e que não conseguiriam sair mais do que três palmos do chão era sintomática.
A cada um aquilo que convém. Algumas frustravam-se com a condição, mas logo se resignavam. A maioria delas não tecia comparações de si com as de altas altitudes e viviam a vida destinada a se viver. Uma delas não conseguia conter o desejo que lhe rasgava por dentro em, um dia, quem sabe, ter o poder que as de altas altitudes tinham: voar em todas as direções e em todas as alturas a partir de vontade própria, indo contra os desígnios de sua condição biológica, natural, que não lhe permitia.
Exercitava-se todos os dias. Treinava a velocidade, porque uma ave rasante, mais experiente, disse que, talvez, com uma maior velocidade na corrida, teria condições. Ora depenava um pouco as asas, ora acrescentava penas, porque lera que esta oscilação poderia mudar sua estrutura, permitindo-lhe grandes voos.
Nada.
Consultou-se com o grande feiticeiro das aves. Havia uma chance. Uma tarefa a ser cumprida, digna de um Hércules: pegar a caixa dourada na cachoeira sagrada e arrancar a juba do leão raivoso que habitava nas imediações da mesma cachoeira. Fê-la. Entregou tudo ao feiticeiro. Este deu um prazo à ave. Nada.
No inverno, entrou na escola de jazz. Esmiuçou a obra de Coltrane, sobretudo o Giant Steps de 1960. Tornou-se exímio sax tenor, mas não voou as alturas que o desejo próprio insistia.
Leu que tudo é possível quando se é dedicado e perseverante. Mas para a ave rasante, de desejo que carcomia, incessante, isto em momento algum sequer delineava-se. Ela não podia.
Florianópolis, 05 de janeiro de 2025.
Cleber Caetano Maranhão