O outono
Na soleira da porta do quarto já se podia adivinhar qual era a sua intenção.
– Mamãe, papai! Posso levar Tristonho comigo?
A mãe, sonolenta, fez que sim com a cabeça e voltou a dormir. O outono já se fazia medrar na árvore raquítica do quintal de terra cinza; ainda o dia igualmente cinza revelava o céu fechado de nuvens carregadas espelhado no cabelo pálido de Yan e ele calçava os minúsculos sapatos surrados por uma marronzice opaca. A coleira e o casaco eram as únicas coisas que faltavam para dar início à aventura. Achou os dois não com muita dificuldade: já estavam num canto de fácil divisar; parecia que ansiara por esse momento fazia algum tempo. Um último empecilho era o de fazer Tristonho sair da cabaninha: estava dormindo e emitindo sibilos que se podiam fazer ouvir até de dentro de casa. A culpa não era do cachorro: era outono. Yan tirou-o da cabaninha, segurou-o por baixo das axilas e o sacudiu. Tristonho despertou. O menino pôs a coleira e ambos marcharam para a cerca de arame; saíram à rua logo após. Tristonho deve ter odiado com todo seu ser ter colocado as patinhas na calçada fria. Seu tutor o puxou abruptamente e ele emitiu um gemido: Yan queria que apressasse o passo. O vento alagava tudo em redor, resvalando nas casas de madeira carcomida ao sul no final do bairro e nos pátios vazios de cimento. O cão ainda gemia; Yan exasperou baixo: “Pare com isso, chorão!”. Iriam cruzar alguns quarteirões desertos preenchidos apenas de folhas secas que cobriam as calçadas e inundavam os meios-fios. Chegaram à meia-lua da calçada de uma esquina; Yan susteve Tristonho, olhou para os dois lados: ruas exíguas. Atravessaram. Observava como o cinza da rua – mais escuro – contrastava com o das calçadas: no primeiro brilhavam pontos brancos como constelações; no segundo sujavam-no nódoas de diferente tamanhos. Esse “exame” do cinza foi interrompido; algo o tirara o foco: um barulho contínuo e pesado de solas de sapato dissipava-se no concreto de alguma calçada por perto: poderia ser até na calçada às suas costas. Virou-se para trás e assim também fez Tristonho. Paralisou uns segundos: o que poderia ser aquela enorme figura de madeira que sacudia e escondia, atrás dela, algo com pernas? Pernas essas que usavam calças, calças essas que tinham ao seu final um par de pés calçando sapatos grotescamente extensos. Talvez naquele momento sua curiosidade tenha sido maior que o seu temor, e por isso tivesse dito alto: “Ei!”. A figura de madeira parara; o que estava por detrás dela tornou-se bruscamente, desequilibrando-se. Foi a palidez de sua pele a primeira coisa que chamou a atenção de Yan: o fundo de céu cinza era plano de fundo perfeito para se decretar que a alvura era absurda: concreto seco com tinta branca esguichada. A figura de madeira que carregava assemelhava-se a um ataúde e era quase do seu tamanho. Só depois que Yan iria reparar que o ataúde havia dado lugar a uma esguia aparência; a fios de cabelo ruivos que eram expelidos por um chapéu coco; a olhos que eram dois orbiculares de negro rendados com muito zelo – fazia-se parecer –, pois não se notava nenhum fio solto nas bordas ou nos centros de suas circunferências. Trajava um paletó rubro que parecia de veludo e uma camisa preta por baixo. A calça era de um carmesim vivo e os sapatos, reparou Yan, eram de um couro cor leite condensado. Nas costas o ataúde era cor de ébano. Foi caminhando lento em direção a Yan, o que fez o coração do menino começar a palpitar – e também o de Tristonho. Deteve-se alguns passos, arqueou-se e fixou o olhar vazio em Yan.
– O que deseja?
A voz que saíra dos lábios lânguidos era tão cortante como o vento e mais exaurida que a casca das árvores naquela estação presente. Yan não sabia o que responder. Novamente a curiosidade emergiu.
– Quem é você?
As sobrancelhas rubras franziram sob o chapéu, mas os círculos negros continuaram os mesmos.
– Sou um coletor.
– O quê? – Tristonho emitiu um gemido ao sentar-se na calçada fria.
– Por certo, sabes o que é um coletor, não sabes? Porém, não pareço-me com um daqueles que vêm todo final de tarde, não é mesmo? O que coleto é diferente matéria, homenzinho – Ao dizê-lo, abriu um sucinto sorriso que revelou a Yan os dentes amarelados e as rachaduras nos lábios.
– Não…
Yan encarava com os olhos semicerrados; olhava para o coletor e para a figura de madeira.
– Você fala engraçado... O que é isso que você leva? – apontou para o ataúde.
– “Isso” é o meu estojo.
– Estojo? Esse é o maior estojo que já vi! O que guarda dentro?
– “Todos vocês têm e não podem impedir quando vêm” – respondeu, alargando ainda mais o sorriso.
– Nunca fui muito bom com charadas. Papai costumava fazer elas, mas eu nunca acertava. Só Yuri conseguia.
O coletor tirou o sorriso do rosto de imediato, tornou a coluna tesa novamente – Yan pôde notar novamente o quanto era alto e magro – e concluiu em um tom lúgubre:
– É… devo admitir que não é uma fácil para alguém da sua idade.
– Quantos anos você tem?
– Quantos você tem?
– Eu tenho dez.
– Eu tenho metade disso! – disse pausadamente. – Seu cão parece triste. Como se chama?
– O nome dele é Zed, mas só o chamamos pelo apelido, que é Tristonho.
– Isso acaba por explicar as coisas, então.
Yan saiu do transe e percebeu que as mãos estavam entregues ao frio: esqueceu-se das luvas – ou só não achara necessário levá-las. Mas agora o vento atravessava-as. Esfregou-as.
– O que você veio coletar? – perguntou Yan.
– Eu vim atrás de memórias – após dizer, apontou com o longo indicador cadavérico para o estojo. – Já as coletei, agora devo ir embora. Isso é tudo que posso lhe contar. Volte para casa e diga a seus pais que na terra da lembrança estão assentados todos os que estiveram, estão e hão de não estar jamais. Portanto, eles o verão uma vez mais.
O coletor virou as costas e o estojo figurou mais uma vez nas pupilas castanhas de Yan, distanciando-se.
Antes de entrar em casa, o menino tirou os sapatos e os colocou na porta dos fundos; tirou o cachorro da coleira, que foi dormir logo depois; entrou apenas de meias, sorrateiro; abriu a porta do quarto dos pais que estava entreaberta; por fim disse as palavras exatamente da maneira como o coletor as pronunciara. Os dois pareciam dormir profundamente. Yan foi para o seu quarto.