Carola.

Era 31 de julho de 1978. No dia em que Chico Xavier psicografava uma mensagem de Allan Kardec, Carola perturbava Paulinho – como de rotina, dizendo que Julia era uma vadia, piranha, e que lhe sugaria até o último tostão, “se isso for possível é claro”. Paulinho não entendia. Como meu caro? Você não entendeu se Paulinho não entendia se Carola estava dizendo que ele era um pobre ou se ele era pão duro? Calma, logo você compreenderá que Carola era a mãe mais infernal do mundo...

Mesmo ao doze anos de idade (idade de Paulinho, é claro) Carola fazia o filho ir ao Ceasa às quatro horas da manhã só para comprar um quilo de verdura, o coitado andava cinco quilômetros só porque a senhora não queria lhe dispensar umas moedas para a condução. Mas não pára por ai, Paulinho, tadinho, certa vez foi lhe mostrar o boletim da escola. Despudorada, a velha lhe socou a testa até lhe abrir um rombo do tamanho de uma bunda bem no vão entre o olho esquerdo e a parede do nariz, que a esta altura estava roxo de tanta chinelada na cara. Como não bastavam as surras, as humilhações em público eram freqüentes; Paulinho era tudo, de “pirralho” até “pulga de porco”. Isso para lhe poupar caro leitor, dos palavrões sórdidos da desbocada anciã.

Mas naquele inverno de 78, o sangue escorreria sobre a família e libertaria os oprimidos, posto que a luta de classes tarda, mas não falha, estava chegando o dia de Paulinho. Ou será de Carola, amigo leitor?

Bom, o fato é que dona Carola sentia fortes dores no coração. Paulinho dobrou a escala de trabalho para dar conta dos remédios caros, todos para enfartados. Sempre que abria a porta do quarto – ele o Paulinho, a velha resmungava “seu infeliz, me trouxe o medicamento?”. “Sim mamãe”. “Mamãe? Seu verme, em breve chamará aquela sem teto de mamãe”. E a medida em que sua doença crescia (da velha), aumentavam os adjetivos e o horário de Paulinho na Padaria da Cida, onde ele, O Paulinho caro leitor, trabalhava. Por favor, não confunda, os adjetivos também eram para o filho “desgraçado”, se Dona Carola nos permitir plágio do xingamento é claro. Mas eis que vem a catarse desta deslavada estória...

Os dias se passaram e Julia intimou o rapaz:

- Olhe querido. Eu não agüento mais sua mãe. Ou eu, ou ela. Você sabe que te amo,

mas é que não tem como. (Aqui caro leitor, é bom lembrar que sempre que nos deparamos com um ultimato destes, é porque o requerente já fez sua opção).

- Calma querida, ela está morrendo.

Dona Carola como era boa de ouvido, ouviu os cochichos que vinham da sala e respondeu:

- É isso né seus calhordas? Vocês querem a minha morte!

A partir daí Júlia desistiu. Arrumou as malas e foi embora. Carola passou também a beliscar e cuspir em Paulinho toda a vez que este ia lhe dar banho ou aplicar as injeções necessárias ao tratamento. Os dias se passaram e Paulinho estava exausto. Trabalho, trabalho e mais trabalho. Solitário, sem o corpo de Júlia em detrimento do de Carola, o filho amável agora era um zumbi. Além dos desaforos, ele (Paulinho), tinha de suportar as insônias e broncas do chefe que já estava para demitir o funcionário apelidado de “senhor olheiras” pelos companheiros de ofício. Fornadas de pão queimadas, e descontadas do seu pagamento é óbvio.

Antes mesmo do fim da estação, mas bem depois da partida de Júlia, Carola finalmente faleceu. No momento do fato, ela estava segurando as mãos do filho enquanto tentava concluir que “Ela era independente o suficiente para ser cuidada por um idiot...”.

Durante o enterro de Carola, Paulinho acendeu um cigarro (é válido lembrar novamente caro leitor, que Carola não permitia que Paulinho fumasse, enclausurando assim o único vício do rapaz). Enquanto deliciava-se com um Carlton vermelho, Júlia se aproximou e o abraçou.

- Finalmente livres.

- Sim, finalmente livres.

FIM.

Continuação...

... Como amigo leitor? Você não achou este conto sombrio? Pois bem, vou lhe dizer o que é sombrio. Sombrio é você amigo leitor, lendo apenas algumas linhas, desejar a morte de uma velha senhora sem ao menos saber se ela era abusada sexualmente, sofria de Alzaimer ou apanhava do filho. Isso sim é sombrio caro leitor...

Raul Koliev
Enviado por Raul Koliev em 18/01/2008
Reeditado em 19/01/2008
Código do texto: T822993