O último livro

Santino era porteiro de um prédio antigo no coração de Higienópolis, um bairro onde os altos edifícios e as árvores alinhadas exalavam um sopro de modernidade. No entanto, o prédio onde ele residia parecia um sussurro de um tempo há muito esquecido. Sua fachada, desgastada pela passagem do tempo, o elevador rangente que, como um ancião, contava segredos antigos, e o aroma da madeira envelhecida contrastavam com o luxo que se estendia ao redor. Santino não se importava. Como o edifício, ele se erguia firme diante da fúria implacável do tempo, silencioso e resiliente. Cada ruga no concreto parecia guardar histórias que apenas ele entendia, como se o edifício fosse um espelho de sua própria alma.

Viera do Ceará, carregando em seu peito o calor seco da terra, o cheiro da poeira erguida pelo vento, e o som do forró que invadia as noites quentes de verão. As lembranças de sua infância eram tão nítidas quanto as palavras de um cordel que ele recitava com sua avó. O sorriso dela nas tardes preguiçosas e o avô, figura paterna, oferecendo sopa com ovo frito na escadaria de terra batida, com as mãos calejadas como se fossem raízes antigas. Os braços do velho, marcados pelo sol inclemente, refletiam a luta silenciosa de um homem que também carregava o peso de um destino que, embora não compreendido, aceitava com dignidade. Havia nele um orgulho silencioso nas raízes que o formaram, uma carga pesada que, paradoxalmente, também lhe conferia força.

No bairro sofisticado, Santino se via como uma sombra discreta. O velho prédio parecia um mosaico de histórias não contadas, e, entre elas, estava a de Dona Norma, uma moradora solitária que cruzava a portaria todos os dias. Ela nunca pediu nada, mas seu olhar sereno parecia esperar algo que ele não sabia oferecer. Talvez porque, como ele, também carregasse a sensação de estar deslocada, de ser um eco que o tempo desejava apagar. A cada dia, ele a observava mais de perto, sentindo que ela, tal como ele, estava perdida, perdida na distância entre o ontem e o amanhã, perdida em sua própria busca por um lugar que jamais encontrou.

O dia em que a sorte bateu à sua porta começou como qualquer outro. Quando recebeu a ligação avisando que havia ganhado na loteria, ele mal reagiu. "Santino, você ganhou!" dizia a voz entusiasmada. Mas para ele, a sorte era algo que vinha e vai, como a chuva no sertão que, de repente, se perde no horizonte. O que o movia não era o dinheiro. O que importava era o que ele faria com isso. O que ele faria consigo mesmo diante de um mundo que já não parecia mais seu?

Foi assim que a ideia da livraria nasceu, não como um mero desejo material, mas como uma chama acesa no fundo de sua alma. Santino sabia pouco sobre livros. Para ele, eram objetos distantes, quase sagrados. Ainda assim, a livraria parecia um sonho impossível, mas irresistível. “Vender livros é como vender água ou bala. O valor está nos olhos de quem compra”, pensava. Mas no fundo, a livraria não era apenas um negócio; ela era o espaço onde ele tentaria, de alguma forma, se reencontrar, onde as páginas de sua própria história ainda estavam em branco, esperando para serem escritas.

No dia da inauguração, Santino se apoiou no balcão e olhou para as prateleiras repletas de livros. A livraria parecia respirar, com seus corredores que se estendiam como se fossem infinitos. A luz suave do sol atravessava as janelas altas, iluminando os livros como se fossem árvores buscando calor. Mas, por dentro, ele sentia uma inquietação, uma dúvida persistente: "O que estou fazendo aqui? Quem sou eu para viver este sonho?” A cada livro que tocava, a sensação de que sua vida era apenas uma repetição das memórias não vividas o imobilizava, como uma sombra que se estendia por seu coração.

As lembranças do sertão o assombravam e ao mesmo tempo o confortavam: o trio de forró, o cheiro da terra seca, a poeira que parecia nunca sair de seu corpo. Tudo isso parecia uma canção que ecoava incessantemente. Ele se perguntava se estava aprisionado em um ciclo interminável, uma repetição do que já vivera. Mas, ao mesmo tempo, algo na livraria o convidava a seguir em frente. Era como se ela o chamasse para escrever um novo capítulo, para transcender a prisão das lembranças e se permitir ser mais do que uma sombra do que já fora.

O primeiro livro que ele abriu naquela livraria foi um marco. Não era o mais valioso, nem o mais antigo, mas falava sobre a vida que se esconde nas entrelinhas, sobre os momentos que não se escrevem, mas se vivem. Cada página parecia recortar um pedaço de sua própria história. Era como se aquele livro dissesse que a vida não era determinada pelo ponto de partida, mas pelo que escolhemos fazer com o que nos é dado. Ele, que sempre acreditara ser apenas um eco de um passado distante, começou a sentir, naquele instante, que ele ainda tinha o poder de reescrever o seu futuro.

Naquela noite, Santino sentiu, pela primeira vez, que estava criando algo maior do que ele mesmo. A livraria não era apenas sua; ela era de todos que ali entrassem e encontrassem um pedaço de si nas páginas dos livros. Como seu avô lhe oferecia sopa nas escadas de terra, ele agora oferecia histórias, memórias e um espaço onde outros pudessem buscar suas próprias respostas. Ele finalmente compreendeu que, de algum modo, a livraria era a resposta para sua busca: um refúgio, uma metáfora, e ao mesmo tempo, um espaço para se reinventar.

E ele, com a coragem de abrir um novo capítulo, soube que estava, de fato, escrevendo sua própria história. Não se tratava do passado, nem do medo de ser refém da repetição, mas da força de virar a página e encontrar, no inesperado, o verdadeiro sentido da vida. Como seu avô lhe dizia, repetidamente, no sertão:

— Se não repito os outros, repito a mim mesmo. E talvez, no fim, seja essa a verdadeira originalidade.

Erogat C
Enviado por Erogat C em 26/12/2024
Código do texto: T8227530
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