Banquinho de madeira

Dia de chuva era também dia de futebol. Aliás, não era futebol que falávamos, era simplesmente bola. Chovia forte e no campinho de chão batido com traves improvisadas de bambu, jogávamos bola. Sem juiz, sem uniforme, sem nada. A bola, outrora branca, mas agora da cor da terra, soltava o couro e vazava ar por algum buraco minusculo. Tinha que ter uma bomba por ali para, por vezes, parar o jogo para encher a bola.

A vida de uma criança pobre vivendo na periferia de uma pequena cidade não era nada fácil. Mas tudo era esquecido num jogo de bola onde, uma falta, um pênalti ou um mero escanteio, era conquistado no grito, já que não tinha juiz. Eu era feliz jogando bola. O campinho era perto de casa, num terreno baldio, onde sem autorização do proprietário (nunca soube quem era) construímos o campo. Tempos depois destruíram o nosso campinho e construíram uma mercearia.

A gente improvisava jogos de bola na rua, também de terra, onde morávamos. Futebol era felicidade, mas acima de tudo um alento, uma forma de esquecer os olés que a vida nos dava.

Era tempo de copa do mundo e na velha televisão em preto e branco de casa, os craques da seleção de 1982 desfilavam, com um futebol de encher os olhos. Eu sonhava em ser jogador, mas também queria ser radialista, cantor brega ou fotógrafo de revistas de mulheres nuas. Não tinha ideia do que poderia me aguardar no futuro, não planejava nada, só sonhava. As oportunidades que a vida porventura poderia oferecer, passavam longe dali. Normalmente, por aquelas bandas, com 12 ou treze anos começava-se a trabalhar, depois dos dezoito vinha um serviço “fichado”, casamento, filhos e morar de aluguel; não necessariamente nessa ordem. A vida era assim: difícil fugir disso.

Outro dia, na minha rua, apareceu um rapaz de uns 20 anos, foi morar numa das quitinetes na mesma quadra em que eu morava. Era alto, magro e usava uma cabeleira à moda dos anos 70, morava sozinho. Ficava todas as tardes sentado num banco de madeira na calçada em frente às quitinetes, sozinho. Nunca o vi com outra pessoa. Eu passava por ele, geralmente com uma bola debaixo dos braços e ele me cumprimentava com um sorriso. Parecia simpático, talvez fosse com minha cara; mas era difícil um adulto agir com simpatia com um moleque sujo e catarrento que vivia correndo atrás de uma bola e de vez em quando quebrando vidraças e dando bolada nos outros. Até entendo a antipatia de alguns. Mas não entendia a simpatia daquele rapaz por minha pessoa.

Uma vez, jogávamos bola na rua que estava um barro só, muita chuva naqueles dias. Do nada apareceu Eliseu e pediu para entrar no jogo. Sim, claro, pode entrar. Não havia opção de escolha, o cara era maior do que todos nós e só restava aceitá-lo na nossa modesta partida. Porém, sabíamos que seria uma tragédia, o time dele ganharia tudo, e assim foi, meu time tomou uma sacolada de gols.

Mas que estranho, esse sujeito poderia estar fazendo qualquer coisa e não jogando bola com um bando de moleques. E ele marcou gols, se sujou e se divertiu muito.

Conversamos algumas vezes, sujeito muito educado. Falava que havia servido o exército numa cidade grande e que jogou bola num time importante quando adolescente, mas não gostava de falar da sua vida pessoal e deixava bem claro isso. Mas eu gostava dele “cara gente fina”, e apreciava muito essa “estranha amizade”.

Os dias foram passando, meses… ele sempre ali no final da tarde sentado no banco de madeira na calçada, às vezes fumando; sempre sozinho. Quando eu passava por ali ele me cumprimentava e batíamos um papão.

A vida não era fácil para ele também, eu pensava. Mas ele tinha um emprego, morava sozinho, podia jogar bola quando quisesse e jamais seria xingado ou levaria uma surra, devido ao seu tamanho. Deveria ter garotas no seu pé, era um cara de boa aparência. E nós, moleques sujos, nada de garotas, nem dinheiro, nem nada. Até para jogar bola tinha que driblar os pais e correr riscos, dependendo do horário. Eliseu era o cara. Na verdade, aqueles dias eu não queria mais ser jogador de futebol, queria ser Eliseu.

Num dia de sol e muito calor, eu estava com a molecada no campinho já encerrando uma tumultuada partida de bola com briga e tudo, quando um moleque veio apressado e quase sem fôlego avisar que Eliseu tinha se matado, estava ainda pendurado em sua quitinete. Corremos para lá, a molecada curiosa querendo ver a cena e eu tentando esconder o choro. As pessoas se aglomeraram na frente da casa dele e à polícia ainda não havia chegado. O fato trágico acabara de acontecer. Os moleques conseguiram entrar na casa e viram o corpo de Eliseu ainda dependurado. Eu não tive coragem. Todos ali demonstravam curiosidade e comoção, acho que mais curiosidade do que comoção. Qual seria o motivo? Por quê aquele sujeito tão gente boa havia se enforcado?

Raramente algum adulto simpatizava comigo, nem meus parentes gostavam muito de mim. Eu era um moleque calado e meio estranho e até entendia por que os adultos não iam com minha cara. Normal pensava. Eu nem sequer sabia contar piadas, acho que sabia mesmo só jogar bola e quem ligava para isso? Mas o Eliseu se importava e até conversava comigo, ia com a minha cara. Então, por que ele fez isso, como pode uma coisa dessas? Fiquei abalado de verdade, demorei para me recuperar.

Ainda quando o corpo estava dependurado e exposto, saciando a curiosidade do povo, algumas pessoas falaram que o ato teria sido por uma garota. Mas nunca fiquei sabendo o que de fato teria acontecido com meu amigo.

Os dias foram passando, as pessoas se esquecendo de Eliseu e a vida seguia em frente. Mas quando eu passava, com uma bola debaixo do braço, em frente à quitinete e via o banquinho de madeira onde Eliseu sentava…